Marcelino Freire: “A literatura que eu escolhi fazer já tem me levado a lugares aonde eu nem imaginava estar”

Marcelino Freire

Marcelino Freire (Foto: Virginia Ramos)

Considerado um dos maiores contistas da literatura contemporânea, o escritor Marcelino Freire está lançando seu primeiro romance, intitulado “Nossos Ossos” (Editora Record). Artista múltiplo, Marcelino constrói um enredo que envolve amor homoafetivo, violência paulistana, nostalgia do Nordeste, teatro e a relação familiar.

O romance conta a história de Heleno, dramaturgo que no passado saiu de sua cidade no Nordeste por causa de um amor, Carlos, e veio para São Paulo tentar alcançar o seu desejo de atuar. Anos depois, Heleno descobre que um dos boys que se relacionava faleceu violentamente e coloca como missão levar o corpo do michê até seu pai e mãe, sem ao menos saber quem são. Dá-se início a um recorrente diálogo interno do protagonista sobre sua vida, assim como na busca de descobrir quem realmente era o michê e familiares. Marcelino aprofunda-se no submundo paulistano para contar uma história de amor e a descoberta da fragilidade humana.

Autor de livros consagrados, como “Angu de Sangue” (2000) e “Contos Negreiros” (2003), Marcelino Freire concedeu uma entrevista por e-mail para o Livre Opinião em que explicou o processo criativo de seu romance: “Acho que escrevo este livro desde que nasci”. Ele também comentou sobre a temática da violência cometida aos homossexuais e a difícil convivência em sociedade: “Parece que não há homossexual feliz em meu livro. Hoje é bem mais fácil ser alegre. No meu tempo, era uma melancolia só”. Marcelino comentou sobre a Literatura Contemporânea e o espaço que suas obras estão tendo nas discussões acadêmicas: “A literatura que eu escolhi fazer, sem concessão, já tem me levado a lugares aonde eu nem imaginava estar”.

Outro aspecto comentado por Marcelino é em relação a escritores que influenciaram sua paixão pela Literatura: “Eu sempre digo que os livros vão aparecendo para nos ajudar a viver. Uma hora, em uma esquina, a gente encontra os livros de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa. E se apaixona”.

Além de autor, Marcelino é presença constante em diversos segmentos que envolvem a cultura. Criador e curador da Balada Literária, evento repleto de atrações que celebra a Arte e suas inúmeras manifestações, Marcelino explicou um pouco mais sobre o evento e da edição de 2013, em que a Balada Literária homenageou o cartunista Laerte, tendo como ideia do autor convidar diversos escritores, como Ivana Arruda Leite, Andréa Del Fuego, Índigo, Paulo Lins e Reinaldo Moraes, para pousarem em frente à lente do conhecido fotógrafo J. R. Duran em fotografias onde eles trocaram de gênero sexual: “Laerte adorou a ideia e o J. R. Duran topou generosamente fazer as fotos”. Confira a seguir a entrevista na íntegra.

Marcelino Freire (Foto: Divulgação)

Marcelino Freire (Foto: Divulgação)

Livre Opinião: Sendo seu primeiro romance, o que o levou a escrevê-lo? Já era um projeto ou com o decorrer do enredo você decidiu prolongá-lo? Como foi o processo criativo e poderia comentar um pouco sobre esta nova obra?

Marcelino Freire: Acho que escrevo este livro desde que nasci. Lá em Sertânia, Pernambuco. Saí de Sertânia aos três anos, mas Sertânia continuou comigo em Paulo Afonso, na Bahia, para onde a minha família foi. E no Recife, aonde cheguei aos oito anos de idade. Meu primeiro romance é feito dessas migrações. Mas eu, antes, resolvi escrever contos. Na verdade, não escrevi contos, escrevi gritos, queixas. Aí eu estava cansado de gritar no ouvido do leitor. O romance me possibilitou fazer mais silêncio. Não que ele não seja um romance ruidoso, mas ele vai com calma, movediço, roendo pelas beiradas. Eu não conseguiria escrever o “Nossos Ossos” se eu não tivesse, faz tempo, montando esse esqueleto. Aliás, pode observar: a capa do “Angu de Sangue”, meu livro de contos de 2000, já tem crânio na capa. No livro “BaléRalé”, tem na capa ossos de duas múmias abraçadas. Meu blog se chama “Ossos do Ofídio”. Ou seja, no fundo, tudo é um mesmo livro. As páginas só vão, digamos, ganhando idade, envelhecendo…

Quantos ossos há do Marcelino Freire em Heleno? Um transplante? Talvez uma costela?

Eu estou neste livro de corpo e alma. E peguei a alma e o corpo também de muita gente. Meu pai, por exemplo, que aparece pouco em meus outros livros, sei bem que a imagem dele está por inteiro, à sombra, neste livro. Estão neste livro idem os bichos que o meu pai matou. Meu pai matava gato, pombo, cortava árvores se as folhas delas estivessem sujando o quintal. Eu desenterro tudo isto em meu novo livro, remonto os corpos mortos. Acho que fiz isto para pedir desculpas em nome de meu pai. Aliás, “Nossos Ossos” é uma história de preocupação com o outro, de amizade, solidariedade. É uma história de amor. Um dramaturgo que passa a se preocupar não mais com o corpo vivo de um michê, com quem ele saía, mas com o corpo morto do rapaz, que precisa ser resgatado do IML. Eta danado! Qualquer semelhança com a minha história é, sim, autopornográfica. Sei onde meti minha “costela” em cada uma das passagens e paisagens dessa saga gay.

No romance, você retrata o ambiente homossexual em São Paulo, bem como a violência cometida às pessoas do gênero. Outro aspecto é o medo dos homossexuais em assumir suas posições afetivas na sociedade. A seu ver, esta situação violenta e preconceituosa transforma o homossexual em ator de sua própria vida, de modo a se inserir na sociedade?

Eu acho que esse meu romance é um romance antigo. Digo assim: parece que não há homossexual feliz em meu livro. Hoje é bem mais fácil ser alegre. No meu tempo, era uma melancolia só. Eu carrego comigo esse tom para baixo, sei lá. Mas olhe: não que eu tivesse problemas com a minha homossexualidade. Ou só nunca saí por aí alarmando sobre ela… Agora, se alguém me pergunta, eu digo. Sou, sim, um homossexual. Não-praticante, mas sou. Meu amigo Marçal Aquino diz que eu sou “um gay platônico”. Aliás, por que é que eu estou falando isto? Porque, creio, você falou de medo lá na pergunta acima. E, de fato, a culpa e o medo sempre aparecem em meus contos de temática homoafetiva. No romance isto também aparece. É que, no fundo, independentemente de escolhas sexuais, somos todos tristes. Estamos em queda, sempre. Minha alegria é triste, já dizia Caetaníssimo Veloso.

Heleno, o protagonista, ator de teatro, interpreta diversos papéis em sociedade. Este método foi construído para apontar as múltiplas facetas que uma pessoa utiliza como alternativa para se encaixar na multidão cultural paulistana?

Você sabia que o protagonista de “Nossos Ossos” era primeiro um poeta? Mas o poeta estava muito chato durante a narrativa, um cagador de regras… Aí eu refiz o livro todo e mudei o ofício do personagem. Tornei-o um homem de teatro. Um dramaturgo, um ator, um diretor. Eu adoro teatro. Eu queria muito fazer teatro, queria envelhecer nos palcos. Mas descobri, cedo, que eu tinha muito pudor para ser ator. Desisti: aí fui ser autor. Então, quando mudei o meu protagonista, de poeta para dramaturgo, fui construindo as facetas dele. Eu queria um cara meio desmontável. A alma dele vai sendo montada a partir dos estímulos que recebe, entende? O corpo do livro também vai sendo montado conforme a gente vai lendo. Dentro dos parágrafos, eu só usei vírgulas. A gente vai montando, entre uma frase e outra, o que é pergunta, exclamação, resposta, reparou? Tudo, no livro, vai ganhando vida ao toque do leitor. Feito os ossos que os personagens desenterram, feito o corpo do michê, que precisa ser entregue de volta para a família antes que vire pó. Enfim. Tudo puro teatro. O tempo inteiro, feito a vida, tudo teatro, teatro…

Quais livros Marcelino Freire mais gostou de ler? E quais ele tem mais gostado de ler?

Nosso! A lista é muito grande. Eu sempre digo que os livros vão aparecendo para nos ajudar a viver. Uma hora, em uma esquina, a gente encontra os livros de Manuel Bandeira, Guimarães Rosa. E se apaixona. Aí, Guimarães nos pega pela mão e nos leva aos livros de Clarice Lispector. Aí tem um tempo que a gente passeia com os livros dela para cá e para lá. Eu me lembro de quando Clarice me deixou ao lado de Virginia Woolf. Depois, saí pela noite com os personagens de Jean Genet. Descobri, pelo caminho, as linhas de Campos de Carvalho, de Hilda Hilst, de Julio Cortázar. Adoro os escritores de minha geração (e de quase-geração): Lourenço Mutarelli, Santiago Nazarian, André Sant’Anna, Andréa Del Fuego, Sérgio Vaz, Luiz Bras, Paulo Lins… E tem gente nova já me ajudando, velho que estou ficando, a atravessar a rua: Marcos Fidalgo, Japa Tratante, Teodoro Balaven, Isadora Krieger, João Gomes, William Zeytounlian, Victor Rodrigues, Bobby Baq, ufa! É muita estrada aí de livros, no passado e pela frente, sempiternamente.

Tendo passado – e iniciado, talvez – por pequenas editoras e também através de suas experiências com a Balada Literária, quais as perspectivas que você consegue enxergar para a literatura contemporânea – especialmente em relação aos novos autores e ao mercado editorial nacional?

Citei gente para caramba na resposta anterior. Isto mostra como ando animado. Não sou desses escritores rancorosos, pessimistas. Tem muita coisa eletrizante acontecendo. Sempre que posso, eu me energizo desses tantos movimentos. Não existe mais, como antigamente, a figura apenas de um único autor, de uma única autora. São vários autores fazendo a cena, revigorando a paisagem. Sempre digo que não há na literatura brasileira atual uma ação tão apaixonada e apaixonante e guerrilheira como a cena que acontece na periferia de São Paulo. Os escritores encastelados ignoram, as academias estão peidando para isto, mas isto é o presente mais cheio de futuro e eternidade que eu conheço. Porque os autores da periferia não só deixarão livros, mas deixarão exemplos, atitudes, deixarão suas comunidades, para sempre, transformadas, donas de si, cheias de pulsação e autoestima. Acredito nisto. Eu escrevo porque eu acredito nisto. Eu levo fé.

Sabemos que a academia ainda tem um caso monogâmico e – por que não – cristão com o cânone literário. No entanto, assim como muitos relacionamentos deste tipo, há sempre aquela “escapadinha” e, assim, Marcelino Freire, Luiz Ruffato, Daniel Galera e, talvez entre esta geração e uma anterior, mais ainda entre os contemporâneos, Milton Hatoum, têm conquistado espaço nas discussões acadêmicas. Como você vê isso em relação à sua obra e também num panorama mais amplo, considerando estes e outros autores que, de certa forma, reanimaram uma geração de 1990 que andava já quase sem vida?

Eu estou com o costume, aqui, de responder parte da sua pergunta na pergunta anterior. É sinal de que estamos sintonizados. Assim, digamos, repetindo, pois bem: essa coisa de morrer, de ir embora e de deixar uma obra. Eu não sei. Só deixarei ossos. Minha cabeça, então, de tão grande, dará uma bela carcaça. Brincadeiras à parte, acho que o que eu fiz até agora me deu prazer e deu prazer aos outros. Digo: a literatura que eu escolhi fazer, sem concessão, já tem me levado a lugares aonde eu nem imaginava estar. A todo tempo, recebo uma mensagem de um leitor, que diz ter tido o coração invadido pelo que eu escrevo. Eu agradeço, comovido. E isto já me deixa contente. Contente de saber que a minha vingança particular ganhou um par. Sei lá. Não me vejo nesse cânone citado por você. Estou feliz de estar, de alguma forma, é falando com algum jovem leitor lá de Sertânia, Pernambuco. Sei que a minha literatura, o caminho que ela trilhou até agora, por exemplo, ajudou a minha mãe no final de sua vida. Ela que deu a vida pelos seus filhos. Enfim… Eu já estou bem, eu estou em paz, é isso o que eu quero dizer. No dia em que eu acreditar que eu já entrei para o cânone, na verdade, podem me enterrar. Enterrem os meus ossos. Eu entrei foi pelo cânone. Eu me fodi, podem apostar.

Entrevista: Jorge Filholini e Vinicius de Andrade.

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