Ana Paula Tavares e o ilusionismo das palavras

Ana Paula Tavares

Ana Paula Tavares

Como desvendar a mulher angolana frente às questões da pós-colonialidade que pairam sobre Angola? Como entender os seus anseios, desejos e conquistas, no diálogo entre tradição e modernidade? Esses são alguns dos questionamentos que permeiam as obras da escritora Ana Paula Tavares.

Nascida na Província de Huíla, sul de Angola, Ana Paula Tavares é historiadora, com grau de Mestre em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Escritora ativa, caminha pelos gêneros da poesia e da prosa, numa dança híbrida que dá um tempero rítmico à prosa, levando, assim, a narrativa para os campos da poesia.

Seu primeiro livro, Ritos de Passagem, foi publicado em Angola, em 1985. E, desde então, tem produções artísticas que ultrapassam as fronteiras do país, publicando outros trabalhos em Cabo Verde, Portugal e Brasil. Desde este primeiro texto, as obras de Ana Paula Tavares representam um enigma. A dança híbrida da linguagem convida o leitor a desvendar os mistérios de sua escrita. Em sua busca pelo resgate das mais diversas histórias das tradições angolanas, consoante com o contexto histórico atual de Angola, a personagem principal de suas obras, a mulher, é retratada como um quadro cubista, posto que a geometria do corpo feminino se faz presente.

Mas como falar sobre o corpo em um contexto histórico de guerras ainda sentidas? Angola foi colonizada por Portugal e conseguiu sua independência em 1975. Logo após a Independência, entretanto, o país entrou em uma longa e sangrenta Guerra Civil, desencadeada pelas divergências e disputas pelo poder entre os grupos revolucionários dos movimentos de libertação de Angola, do período colonial. A Guerra terminou em 2002, com mais de 500 mil mortos e um milhão de pessoas que foram  obrigadas a se deslocar dentro do território do país.

Frente a esse contexto, Ana Paula Tavares cria suas obras e fala sobre o corpo. E, dentro deste enigma, a mulher não é representada como uma figura una, ela é recortada, fragmentada, dividida em partes, metaforizada com o auxílio de representações simbólicas. Nas mãos da autora de A cabeça de Salomé, a “mulher-ser” torna-se, agora, terra, frutos, raízes e outras imagens telúricas que acabam também por representar paisagens incrustradas na geografia espacial de Angola. E as partes do corpo feminino constituem parte integrante e importante na composição desse universo geográfico, como poderemos observar a seguir:

O Mamão

Frágil vagina semeada

pronta, útil, semanal

Nela se alargam as sedes

no meio

cresce

insondável

o vazio…

[Ritos de Passagem, 1985, p. 31].

No poema “O Mamão”, a representação simbólica da vagina pela fruta é um exemplo da percepção do teor sinestésico, como bem aponta a leitura da Professora Inocência Mata (MATA, 2001). O cheiro, o gosto e o sabor são marcas importantes, onde o corpo se fragmenta em símbolos para representar a própria fragmentação da mulher angolana, em sua busca pelas conquistas e emancipações, reerguendo-se do período de guerras e dores, numa tentativa de recomeço de um novo ciclo (“no meio / cresce / insondável”). Além desta sinestesia, a metonímia da vagina acaba por sublinhar o todo de uma mulher, aqui representada pela sua fragilidade. Do vazio anunciado no meio do silêncio bem pode ser entendido como aquele outro do cotidiano sem grandes mudanças, mas que faz a mulher desejar alargar as sedes pelo desejo, pela vida.

O enigma do desejo feminino questiona, assim, tradições e modernidades. Afinal, quando a mulher angolana poderá, finalmente, recompor o seu corpo fragmentado? Numa de suas crônicas, declara Ana Paula Tavares: “Fechei-me no quarto mais pequeno da casa antiga, pendurei na porta minha voz de menina, prepare-me para fugir, saltar o cercado. Não fui capaz” [A Cabeça de Salomé, 2004, p.72].

Os cercados estão presentes nas obras da escritora. O cerco é representado como uma divisória de dois mundos: o mundo em que podemos, ou devemos estar, e o mundo desconhecido. O ser e o estar, de um lado, e o vir a ser, de outro. Os cercados de Ana Paula Tavares configuram-se como dois lados obscuros, o dentro, que é a tradição, o que a mulher angolana já vive, e o fora, que é o desconhecido, as modernidades que hoje estão inseridas em uma pós-colonialidade africana.

Mas essas divisões não são estanques. O conceito pós-colonial representa justamente essa fragmentação, essa hibridização dos espaços. Não há mais um cerco de tradição e outro da modernidade, mas espaços que dialogam entre si, com fronteiras muito tênues e quase imperceptíveis. Muitas vezes, o fora está dentro, assim como o contrário. Por isso, a fragmentação do próprio ser.

Na obra de Ana Paula Tavares, a mulher ainda não foi capaz de saltar o cercado, afinal, estar dentro não significa poder estar. Assim, o diálogo entre tradição e modernidade é muito interessante dentro desta perspectiva, porque ambas podem causar o silenciamento da mulher. Por isso, a autora nos traz uma leitura consciente de que essas dicotomias nem sempre são realmente dicotômicas, simples de serem vistas e compreendidas. E na perspectiva angolana, muitas vezes essas dicotomias podem ser pendulares.

Seus dois últimos livros de crônicas, O Sangue de Buganvília (1998) e A Cabeça de Salomé (2004) retratam esses questionamentos, na busca de entender Angola e o papel da mulher, tanto na tradição como na modernidade, ou melhor, na póscolonialidade. No primeiro livro, o leitor visita uma Angola fragmentada, onde as tradições estão desaparecendo em favor do “desenvolvimento”. Já em A Cabeça de Salomé, a transgressão dos mitos bíblicos dá margem para reescritas de histórias onde as mulheres podem ser as verdadeiras protagonistas. Não é a cabeça do homem que é servida, agora, numa bandeja, mas a da própria mulher que não pode (e não quer) abrir mão de seus anseios e prerrogativas.

Os enigmas são criados para serem desvendados, e as obras de Ana Paula Tavares vão além. O ilusionismo de suas palavras aponta mais outros enigmas. Aí reside, justamente, a capacidade de seus textos se mostrarem surpreendentes.

Por Larissa Lisboa

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