Copa (do fim) do Mundo

10520621401482036gDia de jogo. Dia de caos. É o inferno na terra.

Aconteceu que da ultima vez era dia de jogo e a fila de carros começava no portão da garagem do prédio e ia até o quinto dos infernos, não teve maneira de chegar em nenhum lugar. Engarrafou da lapa até a Penha e até os coitados dos jogadores ficaram prensados no meio da muvuca e quase não chegam a tempo no campo, imagina o fiasco, os bichinhos entrando em campo tudo atordoado stressado desconjuntado, ganharam nem sei como.

Eu histérica o povo descontrolado os flanelinhas amontoados, os ambulantes excitados os jogadores desnorteados os trombadinhas aproveitando a deixa, e o trânsito todo encalacrado-apertado-esmagado, realiza a desgraça. Coitada de mim.

Mastigando unha como se fosse pipoca amanteigada, com um comichão desgraçado na boca do estômago porque da ultima vez foi uma lastima ficar presa dentro do carro, engavetada no meio de três carretas dois caminhões de lixo e um ônibus de corinthiano-porco tudo endiabrado, tudo cuspindo pela janela que eu não consigo entender que é jogo do Brasil e eles continuam de preto-e-branco, continuam xingando, continuam gritando pra mulherada que é tudo bunda da Fiel, ô bando. A fila de moto-boy sem-capacete e sem-respeito amaldiçoando até a sombra, buzinando na bunda do povo, e dá a seta pra um lado e pro outro, acelera empina e queima a borracha da roda pra fazer pressão mas vai dizer que tem fresta pra passar, tem nada, porque ninguém sai do lugar ninguém se mexe e o jogo vai começar, ô pesadelo. O desespero toma conta da torcida que continua tudo atulhada se retorcendo no meio da rodovia todo mundo vestido de verde-amarelo e o farol verde amarelo vermelho-verde amarelo vermelho até parece piada, que não tem maneira de se mover meio centímetro e o verde amarelo vermelho continua insistindo, o único no engarrafamento inteiro que está cheio esperança. Todo mundo frenético, embicando um carro no outro, mandando o guardinha de trânsito tomar-no-meio-do-rabo á capela, o infeliz ficando verde-amarelo-vermelho que parece o semáforo.

O cheiro de escapamento podre empestiando a atmosfera, fumaça de cigarro misturada com bafo de esgoto fermentado do rio, que cozinhou toda merda do povo debaixo do sol peçonhento. Imagina o mormaço, o ar morto entrando pela ventilação do carro e eu me intoxicando, todo mundo ficando verde e amarelo e sem vontade sem paciência sem educação, é o cão. Congestionamento miserável.

O ar-condicionado girando um ar morno porque o carro não anda e tudo vai virando um forno, uma sauna a vapor sem eucalipto, que o sol parece maçarico e dá pra fritar ovo e assar churrasco de gato no capô do conversível. Todo mundo xingando suando cantando assoprando-corneta infernizando com apito escutando-o-hino tomando-cerveja comprando-bandeira mijando-na-calçada, foi o cão. Os flanelinhas alucinados, vendendo pandeiro dvd camiseta biriba ki-suco salgadinho amendoim refrigerante-quente e pipoca-doce, vendendo a mãe. Trombadinha pulando no vidro do carro, rabiscando um inglês inventado, pedindo dinheiro-moeda-trocado-dólar-money-cash, please, arruma qualquer coisa está valendo doutor, e vão entrando de cabeça na janela de meio-mundo, roubando a paciência do povo que já está fudido e a do turista, que vai se fodendo aos poucos. Todo mundo rouco esganiçado afobado desesperado, que o trânsito pára e vira o quinto dos infernos essa cidade.

Tudo entupido de gente.

E ninguém sai do lugar. Quem foi não volta. Quem ia não foi. Quem foi parou. Quem ficou desistiu. E o jogo vai começar, vai começar meu-deus-do-céu, e mete a mão na buzina como se fosse resolver alguma coisa. Buzina de van de ônibus de moto de lambreta de carro de corneta de bicicleta, essa copa promete, o hino nacional ao som de buzina-trombeta-apito e grito de flanelinha, ficou até interessante, deveria ser a musica oficial da copa (do fim) do mundo.

Foi duro de dormir essa noite, confesso. O jogo é só amanhã e eu aqui sofrendo. Vê se pode.

Toda aflita, roendo a pele do dedo, porque a unha que foi privilegio do primeiro jogo agora ficou no toco. Eu devia ter poupado dois dedos já que eu sabia o que estava por vir. E o que eu faço com o frio na barriga que parece que sou eu que vou jogar, que sou eu que defendo a pátria-amada-desgraçada-Brasil. Qual será que vai ser o placar, quantos gols vamos marcar, quantos frangos vamos tomar, será que vai ter gol-contra de novo?, que palhaçada, imagina a cara do sujeito marcando ponto no próprio time e o país inteiro amaldiçoando o dia que ele nasceu, coitado, que fardo. Quantas faltas paulistinhas rasteiras, chutes-na-canela carrinho-maldoso mata-leão, quantas mordidas vão ter. E o juiz safado-trombadinha-ladrão-corrupto fazendo vista grossa na rasteira de um e de outro, o bandeirinha cego sinalizando pênalti que nem existe e vai marcar impedimento onde não tem impedimento que eu sei, e a torcida vai descascar a mãe o pai a família inteira do pobre-cego, ô dó. Será que vai ter cartão vermelho-porradaria-sangue-tumulto? Tomara.

O pior é que já está em cima da hora e eu aqui, debruçada de binóculo na sacada de casa, rindo do povo se estapeando lá em baixo, e eu não decido se saio se fico, saco. A essa altura no bar não tem mesa, na rua não dá pra andar, de carro não vou sair que eu é que não vou fazer o papelão de ficar parada no quarteirão debaixo, com cara de otária, porque eu nem tenho tv nem rádio nem nada no carro, imagina correr o risco de novo, que trauma.

Tem a casa daquele cara que trabalha comigo que dava pra ir andando, mas fico sem graça de chegar sem ser convidada. E olha que eu dei varias indiretas nele, perguntei até se ele tinha palpite do placar e nada de ele me convidar, mais insistente que eu, não teve. Acho muito mesquinho esse tipo que tem piscina em casa e não convida. É coisa de gente que tem micose, aposto. Até combinaram que as meninas iam de biquíni amarelo e verde e os meninos de sunga azul, olha que breguice, que ideia de girico, imagina o povo todo combinando, com a bandana da bandeira amarrada na cabeça, tudo comendo churrasco amendoim batatinha patê de atum com maionese dentro d’água, bebendo cachaça cerveja e vodca no copo de plástico colorido, e a gordura da picanha boiando pelas bordas e a água toda mijada toda morna que nego não vai arredá o pé pra ir no banheiro até o jogo terminar, aposto.

Melhor ficar em casa. Esta cidade está uma bagunça. Tontos são os gringos que nem imaginam o tamanho do risco que estão correndo. Que é arrastão em Ipanema, arquibancada despencando na cabeça, viaduto desmoronando em cima de ônibus e passeata pra tudo quanto é lado pra chacoalhar a estrutura do governo, porque o povo não é besta não é burro não é trouxa, já está de saco cheio de ver tanto dinheiro financiando a copa e tão pouca comida em cima do prato.

Começou o jogo. O som do hino na garganta dessa gente bagunceira ecoando nas paredes do prédio. Tanto verde amarelo que até o vermelho da Colômbia combina, juro. Parece o caos essa copa e nem parece que é o caos porque é bonito de ouvir. Tanto gringo tanto grito xingamento e buzina, só no Brasil é assim, que o errado vai dando certo nem-sei-como, que o tumulto tem um jeito organizado, chega a ser uma zona bonita de ver. É um milagre, é o jeitinho de fazer do nosso jeito que ninguém mais tem.

Nosso jeitinho brasileiro de ser.

Por Marina Filizola

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