O escritor e ativista Fábio Kabral lançou neste ano o romance Ritos de Passagem. A obra explora a narrativa fantástica inspirada nas tradições africanas, misturando temática política e social.
O romance traz a história de quatro jovens e o sofrimento que cada um enfrenta em um ambiente onde transcorre a conduta e expectativa criada em torno deles. O enredo mantêm as tradições africanas conduzidas fortemente pelos traços singulares e atentos de Kabral.
Em entrevista ao Livre Opinião, Fábio Kabral comentou sobre a ideia de escrever o romance trabalhando a ficção fantástica com as tradições africanas, assim como trazer para a literatura nacional a cultura afrodescendente. Confira a entrevista:
Livre Opinião: Você poderia contar como surgiu a ideia de escrever o livro? O que te influenciou no tema?
Fábio Kabral: Escrever este livro, ou melhor, esta série de livros, é uma ideia antiga. Surgiu quando eu era bem novo, enquanto estava assistindo a um dos meus desenhos prediletos, e disse para mim mesmo: “Não gostei! Eu faria assim, assim e assado!” – e daí essa insatisfação constante perante histórias alheias me levou ao RPG, e do RPG para a elaboração de literaturas próprias – pois afinal, tudo inicia na literatura, não é mesmo? Filmes, games, bonecos, séries…
Para você, utilizar das tradições africanas é importante para a literatura brasileira, de modo a dialogar com ambas as tradições?
Alardeia-se sempre que este país é a feliz união de três culturas: nativo-americana, europeia e africana. Para início de conversa, de feliz essa união não tem nada, pois a criação deste nosso Brasil foi feita com ferro e sangue, e o assassinato de incontáveis vidas… e incontáveis culturas também. Ainda vivemos sob o predomínio das culturas europeias, a começar pelo idioma com o qual nos comunicamos. É importantíssimo, não apenas para este país, mas para o mundo inteiro, realizar esse esforço de resgatar e revitalizar as tão maltratadas e superestimadas culturas e mitos da África, de onde vieram as lendas ancestrais que se espalharam por todo o planeta.
Por que utilizar da linguagem do universo fantástico em seu livro “Ritos de Passagem”?
Esse é um rótulo ao qual submeteram o livro. Para mim, é apenas uma história como qualquer outra. Na minha visão, todas as histórias são fantásticas, pois uma história não é a realidade, não importa o quão próximo desta pareça ser. E, ao que parece, utilizei muito da linguagem dos mitos, a linguagem disto que chamam de fantástico, de fabuloso, com a presença de monstruosidades e espíritos de poder. Ainda assim, falam também que este livro é medonhamente realista em diversos pontos, especialmente no que diz respeito nas relações sociais e psicológicas entre os personagens.
Como foram as pesquisas em relação às tradições africanas para retratar no livro? A ficção te propôs criar alguma informação na narrativa?
Ninguém vive sem ficção. Os que se dizem “pé no chão” assistem à sua novelinha, ao seu joguinho de futebol, e tendem a aumentar, e muito, os trâmites cotidianos do dia-a-dia, como se fossem sagas épicas da vida real. A ficção, o mito, existe para nos ajudar a compreender a nós mesmos; por meio da figura do herói, por meio dessas analogias, a ficção nos induz à reflexão, e por meio dessa reflexão inspirada na vitória – ou derrocada – do herói nós encontramos as respostas que precisamos para lidar com as batalhas nossas de todos os dias no mundo real.
Sobre as pesquisas, o que posso dizer é que esta se fez naturalmente; infelizmente temos nas escolas de pouquíssimo a nada a respeito das múltiplas culturas do continente africano. Fala-se tanto que a África é o berço da humanidade, mas o que impera são sempre, sempre os imaginários europeus. Temos filme do Thor, mas não temos filme de Xangô. Tem Fúria de Titãs, mas não tem Fúria de Omakishis. Temos gibis e jogos com super-heróis brancos e europeus e norte-americanos, mas apenas um ou outro afro-americano, e nenhum africano, jamais. É preciso, é necessário, resgatar os imaginários do continente ancestral; por meio de leituras diversas, por meio de vivências, por meio do autoconhecimento, somos capazes de convocar os sonhos dos antepassados e torna-los realidade.
A reflexão sociológica, mesmo sendo em um universo fantástico, bem como o resgate de lendas e mitos proporcionam um diálogo atual com as questões sociais e políticas?
Não tive essa pretensão, mas o mito tem. Sempre tem. Não invoquei propositalmente os diálogos e problemáticas para questões atuais de gênero, sexualidade, raça nem nada disso, porém o escritor não controla a história: o mito possui vida própria. O escritor não passa de um canal, um instrumento para tornar a história realidade. E, sendo o escritor um ser humano, invoca inconscientemente diversas questões que o afligem e que lhe dizem respeito, quer queira ou não. E é por isso que essa série de livros provavelmente continuará a invocar reflexões sociológicas de toda espécie por meio da ficção.
O livro foca na situação de escravidão dos personagens. A sua posição como autor é de denúncia dos dramas proporcionados pelos protagonistas, assim como uma reflexão das atitudes desumanas da sociedade periférica do mundo?
A resposta para esta pergunta ainda consta acima. Como eu disse, conscientemente não tenho a pretensão de denunciar nada, apenas escrever a melhor história que me for possível no momento – as reflexões e conclusões eu deixo para os leitores. A continuação de Ritos de Passagem sai ainda este ano, de forma que poderemos todos alcançar novas conclusões e novos entendimentos em breve. Minha única pretensão com esta série de livros é causar emoções e sensações diversas nos leitores, tal como todas as leituras e vivências que tive e tenho ao longo desta vida me afetam e me tocam, para o bem ou para o mal. E que essas reflexões possam nos ajudar a nos aprimorar cada vez mais.
Entrevista: Jorge Filholini e Vinicius de Andrade.
Imagem destaque: estiloblack.com.br
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