“O mato em silêncio. Da Varanda, ele contemplava. Árvores imóveis, vegetação estática. Era preciso certa concentração para perceber que ouvia cigarras. A trilha-sonora-paisagem não dizia nada. Olhava para aquele mato atrás da casa e imaginava que vida deveria haver lá, onde estava a vida. Por todos os lados. As árvores silenciosamente respirando. Folhas chorando em sereno. Sementes brotando lentamente, irrompendo da terra, vencendo um sepultamento prematuro. Sepultadas para nascer. E por trás de tudo isso, os insetos. Por trás de cada folha, dentro das cascas, misturados aos galhos, invisíveis, milhões de corpos a pulsar. E répteis, anfíbios, mamíferos, aves dormindo. Pássaros sonhando, pousados, desaparecidos. Se pudesse absorver toda a vida que se escondia à sua frente, explodiria” (Biofobia, p. 63).
O escritor Santiago Nazarian lançou neste ano o romance Biofobia (Editora Record). O livro narra a história de André, um roqueiro decadente que depois da morte da mãe retorna à casa de campo onde ela vivia e passa a ter crise existencial a partir do ambiente rural em que se encontra.
Conhecido como “existencialismo bizarro”, neste oitavo livro Nazarian explora a temática da crise de meia idade, em que as frustrações e rancores de André são profundos, deixando o enredo cada vez mais tenso. Outro aspecto evidenciado no romance é a aversão ao ambiente natural e o terror bem desenvolvido, traço este marcado na obra de Nazarian.
Nazarian também trabalha como roteirista e tradutor, desde jovem desenvolve estilo singular em romances como Feriado em Mim e Mastigando Humanos, além do livro de contos Pornofantasma. Em 2007, Nazarian foi eleito um dos autores jovens mais importantes da América Latina pelo juri do Hay Festival em Bogotá, Capital Mundial do Livro. Em 2013, Mastigando Humanos se tornou leitura obrigatória do vestibular da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Em entrevista ao Livre Opinião, Nazarian comentou sobre o desenvolvimento de seu novo romance: “A coisa na verdade foi buscar um tema mais adulto, menos adolescente, porque meus livros estavam muito marcados como juvenis”. Ele também explicou o termo “existencialismo bizarro”: “Como as pessoas não entendem bem o que faço – se é terror, se é juvenil, se é pop – resolvi eu mesmo criar um rótulo, porque é assim que as coisas funcionam”; além de opinar sobre o gênero terror na literatura nacional: “De qualquer forma, vejo um maior espaço para a literatura de gênero no Brasil a partir do momento em que os jovens leitores começam não só a ler, mas a resenhar, discutir e divulgar publicamente nos blogs”. Confira a entrevista na íntegra:
Livre Opinião: Como surgiu a ideia para o enredo de Biofobia?
Santiago Nazarian: Quando minha mãe morreu, foi um período complicado para mim… Nah, minha mão não morreu. A coisa na verdade foi buscar um tema mais adulto, menos adolescente, porque meus livros estavam muito marcados como juvenis. Então olhei para mim mesmo, esse cara chegando próximo aos quarenta, cheio de frustrações e rancores, e resolvi personificar tudo isso num personagem decadente, com uma vida bem pior do que a minha, até para me sentir melhor. A escolha por um cantor de rock foi por isso, porque é uma profissão em que a velhice (ou a perda da juventude) tem um peso maior (do que a do escritor) e também tinha paralelos mais interessantes com minha própria carreira, visto que sou uma autor com certo apelo pop. Tendo o protagonista – o rockstar decadente – foi fácil escolher o cenário, que é bem arquetípico de filmes de terror, a casinha no mato. Daí usei como modelo a casa em que minha mãe vive de fato. E a coisa fluiu.
Poderia explicar por que do livro ser conhecido como “existencialismo bizarro”?
O “existencialismo bizarro” foi um termo que usei para rotular minha obra como um todo, se é que ela precisa de um rótulo. Como as pessoas não entendem bem o que faço – se é terror, se é juvenil, se é pop – resolvi eu mesmo criar um rótulo, porque é assim que as coisas funcionam. O existencialismo bizarro abrange tanto as questões existenciais, profundas do ser humano, como as referências pop do terror, do suspense e do trash. Acho que é um guarda-chuva que engloba bem tudo o que fiz até hoje, por mais que meus romances sejam bem diferentes entre si.
Quais são suas influências? Nota-se uma citação de Lars Von Trier em “Biofobia”, este e outros artistas polêmicos contribuem para o seu estilo nos romances?
Hum… Há a influência confessa de Lars Von Trier, claro. Mas há tantas… O livro mesmo faz referência a tantos, que prefiro deixar para o leitor descobrir. Mas, por mais punheteiro que isso soe, com o tempo a maior influência acaba se tornando você mesmo. Quero dizer, o que você já fez, o que você não fez. É meu oitavo livro, então se torna inevitável eu comparar com meus anteriores e ver como posso fazer diferente, ou como posso refazer certas coisas que deram certo… Faço citações a meus outros livros por diversas vezes, como um bônus para leitores fiéis.
Diversos escritores contemporâneos têm como tema a fuga urbana, transformando o local longe dos centros como “paraíso” e como busca de uma identidade. Em “Biofobia” é diferente, existe, por meio do protagonista, uma aversão ao mato, a não adaptação ao ambiente. Por que a “biofobia”, esse medo em seu novo romance?
Acho que a visão contemporânea do campo está longe da visão bucólica, do paraíso. Acho que o autor contemporâneo está reencontrando o campo sim, mas com uma visão mais conflituosa. E nessa toada BIOFOBIA se encaixa bem, porque é um protagonista ultra-urbano com aversão à natureza. Eu sou um cara que gosta de natureza, já morei na praia e tal; foi uma maneira de criar um conflito – para o bem da narrativa – nesse cenário. Sem querer entregar demais o final, foi também uma maneira de mostrar que todo o mistério e perigo da vida já está na natureza, não é preciso recorrer à fantasia nem aos delírios do ser humano.
Na parte de “notas e agradecimentos” de “Biofobia”, você avisa que o livro é uma obra de ficção. Por que avisar? Você ainda percebe que existem leitores que não conseguem diferenciar o autor da obra? E pode dizer até que ponto o livro é uma referência autobiográfica sua?
Talvez eu não devesse avisar. Algumas pessoas me disseram para não colocar isso. Para afastar mais o livro da minha biografia. Mas… na verdade eu não me importo que me vejam como o personagem. O que eu tenho a perder com isso? Até brinco, basicamente apontando que a grande diferença é que eu nunca fui fumante. Se querem me ver como personagem, que me vejam. Nesse caso, serei um gay visto como um hétero machista, drogado e alcoólatra. André é um loser – e eu não deveria querer ser visto como ele por vaidade? Bem, ele é meu filho, sei que é um filho fodido, mas tenho orgulho mesmo assim. Se me vêem como ele, está tudo bem.
“Até suas fãs, sua ex, duas groupies mais dedicadas migravam para outros cantores, outros gêneros. Rock alternativo não era mais uma alternativa, ao que parecia. Até o tipo de música que ele fazia estava velho; e ele não fazia mais música. Como era possível continuar aproveitando a estirpe de artista sem arte? O que compor, para quem cantar, o que dizer se ninguém estava mais disposto a ouvir? Desligavam na sua cara.” (p. 61).
Partindo da citação acima, André, o protagonista, está em crise de meia-idade, convivendo com o fracasso de uma carreira agora no passado. Por que retratar um personagem fracassado em Biofobia? É um ponto de vista de uma parte da sociedade que não se adaptou com os novos costumes e estilos?
Bem, para começar, acho que todo personagem deve ser fracassado. Ou deve se relacionar com o fracasso. História de sucesso é para auto-ajuda. O fracasso vai da Branca de Neve varrendo o jardim da madrasta à Romeu levando pé da Rosalina ou… Jesus fuzilado, que seja. O importante é o personagem em conflito. O perdedor que vence, o ganhador que perde. Claro, o personagem deve passar por um movimento na trama. Então você pode escolher que ele inicie no topo e vá decaindo. Ou que comece de baixo e suba. É preciso haver movimentos. Foi uma questão para mim, sim, escolher um personagem já em baixa e abaixá-lo cada vez mais. Eu tinha consciência de que ele precisaria ter movimentos, para não chutar cachorro morto. Isso foi uma preocupação consciente minha – como ter esse movimento se eu só queria agravar a crise. Mas nunca me interessou contar a história dos vencedores.
O que é que mudou desde o primeiro livro, o “Olívio”, até o “Biofobia”. Você ainda se reconhece no seu primeiro livro?
Reconheço. E sabe, acho que mudei mais como pessoa, externamente, do que como autor. Continuo acreditando no que escrevia nos meus livros. Lá ainda sou o mesmo.
Em algumas resenhas sobre o seu livro, é quase unanimidade falarem que o “Biofobia” é o seu livro mais completo, mais maduro. Concorda? Se sim, por quê?
Bem, é mais maduro porque estou mais maduro, mais velho e tal. E também porque procurei expor isso explicitamente ao tratar de dilemas de um protagonista de meia idade, né? Isso ajudou…
Você cria muito bem personagens fechados em seus apartamentos, em casas de sítio, em prédios, em esgotos. Você é um cara muito reservado, muito fechado e, digo até, muito solitário?
Sim. Talvez não numa média muito acima da dos escritores, mas sim. Eu não tenho problemas em me relacionar socialmente, mas prefiro ficar em casa, tenho um círculo pequeno de amigos íntimos; e nunca, NUNCA chamo ninguém para minha casa; DETESTO receber quem seja na minha casa. Isso também favorece a solidão – minhas relações com a família também são distantes – não há ninguém da minha família que eu veja mais de uma vez por mês, se tanto. Mas eu procuro corrigir isso com as relações amorosas, em que me fecho realmente.
A seu ver, a literatura de gênero terror está atualmente tendo espaço no Brasil? Ou, particularmente, existem rejeições – por críticos literários e acadêmicos – em relação ao gênero que você adotou?
Eu adoro o gênero terror, mas é um gênero que inexiste no Brasil. Não há livros, não há filmes – há um ou outro autor de reputação controversa. E por mais que eu adore terror, também não posso me considerar um autor de gênero, nem sou visto assim. De qualquer forma, vejo um maior espaço para a literatura de gênero no Brasil a partir do momento em que os jovens leitores começam não só a ler, mas a resenhar, discutir e divulgar publicamente nos blogs.
Quais autores você está lendo no momento e como, no seu ponto de vista, está a literatura contemporânea no país?
Acho que minha geração foi… bem, “É” uma grande geração de escritores. Temos vários de peso, Galera, Del Fuego, Stigger, Ana Paula Maia. A geração atual está mais lenta, a “Geração Dez”, talvez eles estejam mais preocupados em fazer vídeos; mas o Raphael Montes é um moleque bem jovem que está tendo uma grande repercussão merecida. É um excelente tramista. Tem o Hugo Guimarães, um jovem escritor underground que faz uma literatura visceral de que gosto muito. Li o mais recente da Simone Campos, que também é uma grande escritora. A literatura, felizmente, sobrevive porque se pode fazer até em papel de pão. O problema é o espaço cada vez mais restrito que se dá a ela. O papel (de pão) que tem o escritor. É aquela coisa, em terra de cego, quem tem um olho ainda é caolho…
Entrevista: Equipe Livre Opinião
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adorei a entrevista. amo ler entrevista co escritores e desse nível, melhor ainda.
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