
Foto: Luana Sacilotto
Na última terça-feira (02), o escritor moçambicano Mia Couto participou de uma roda de conversa no Centro Ruth Cardoso, em São Paulo. Como mediadores da conversa, participaram o também escritor Marcelino Freire – autor vencedor da edição 2014 do Prêmio Machado de Assis, da Fundação Biblioteca Nacional, por seu romance Nossos Ossos –, o cientista político e escritor Jorge Caldeira e o fundador e atual diretor-curador do Museu Afro Brasil, Emanoel Araujo.
O autor de Raiz de Orvalho (1983), Terra Sonâmbula (1992), Estórias Absensonhadas (1994) e A Confissão da Leoa (2012), está no Brasil para participar da edição 2014 do Fronteiras do Pensamento, em São Paulo. Mia apresentará a conferência “Um repensar de fronteiras” nesta quarta-feira (03), no Teatro do Complexo Ohtake Cultural – os ingresses já estão esgotados.
O evento do Centro Ruth Cardoso, reservado apenas a convidados do Centro, foi uma prévia do que será apresentado pelo escritor no Fronteiras. Mia falou sobre sua literatura, sobre a atual política de Moçambique e da África, de sua infância e relação com a família e também sobre sua história nos movimentos de independência do país, hoje ex-colônia de Portugal.
O autor abriu a conversa com a leitura do texto “Murar o Medo”, de sua autoria, primeiramente apresentado na Conferência do Estoril de 2011 (veja o vídeo). O texto, segundo próprio Mia esclareceu após a leitura, foi escrito às pressas, após ser surpreendido pela notícia de que aquela conferência era direcionada majoritariamente a militares portugueses, fazendo-o rasgar o texto que primeiramente havia preparado para o evento, que era, por suas próprias palavras, “poético demais para a situação”.
Descontraído, atencioso e muito requisitado, ele concedeu uma breve mas muito verdadeira entrevista ao Livre Opinião – Ideias em Debate, como parte das comemorações do aniversário de 1 ano do nosso portal. Marcelino Freire, durante a conversa no evento, perguntou ao escritor se ele tinha alguma crença, alguma espiritualidade e se o autor rezava. Mia respondeu, com muito bom humor, que se considera um “Ateu não praticante” e que sua reza talvez fosse a escrita, um comungar com o mundo. Inspirados por essa resposta, perguntamos a ele o que significava escrever – para Mia Couto – escrever, a importância da escrita para o autor. E ele responde:
Escrever para mim é uma espécie de… Bom, há pouco me perguntavam como é que eu rezo e eu acho que rezo escrevendo. É uma espécie de aceitação de que a relação com o mundo, e com essa coisa da construção de uma proximidade com o mundo, só pode ser feita por esta via. Como se fosse uma espécie de abertura da porta dos sonhos. E acontece que o sonho pede uma linguagem própria, que não existe. Então é uma tentativa, um esboço que faço para traduzir sonhos.
Mia também abordou os temas como as guerras de independência e civil, especialmente nos pontos tocantes à cultura e à religiosidade moçambicana. No texto em que leu na abertura, ele dizia que no “[…] Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável castigo internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão”. Dizia isso para explicitar as peculiaridades da cultura africana e como suas crenças, ancestrais e coloniais, influenciavam nas decisões que marcaram não só a história de Moçambique, como também a produção cultural do país. Perguntamos a ele como é escrever sobre uma África, uma Moçambique, negra e toda uma mitologia que permeia a vida cotidiana, principalmente daquelas comunidades mais ligadas à tradição, sendo um escritor branco e filho de portugueses. Ele respondeu:
Bom, o que acontece é que esta África tomou conta de mim desde menino, porque as histórias que eu escutei em toda a minha infância eram repartidas. As histórias que eu ouvia contar em casa eram histórias contadas em português e falando de um certo Portugal, mas na rua eram as outras histórias que me eram contadas e também em outra língua. Então, desde aí, eu fui me dividindo, fui tornando-me um mestiço em minha alma.
“O Brasil entrou em minha casa por uma voz rouca e que falava do mar”, disse o escritor durante a mesa. Essa voz rouca à qual o autor se referia era o cantor e compositor baiano, Dorival Caymmi, trazido a ele por seu pai, que foi poeta a admirador de Caymmi. Perguntamos a ele como é a relação da literatura brasileira em sua vida e também em sua obra e se ele – e também os leitores moçambicanos – têm tido contato com a literatura brasileira contemporânea no país. Ele responde:
Temos muito pouco contato, infelizmente. Quer dizer, isso é uma coisa muito estranha porque havia muito mais contato antes do que agora. Mas ainda assim há vozes como o Galera [Daniel Galera] e como o Milton Hatoum que me tocam muito. E também me parece que o Brasil conseguiu produzir, na língua portuguesa, uma coisa que nós em África ainda estávamos procurando, que é tentar encontrar uma maneira de nos dizer a nós próprios, numa língua que antes nos parecia ser uma língua do outro, como imprimir nessa língua uma impressão digital dessa coisa que nos chegava, de qualquer coisa apenas nossa. E eu acho que o Brasil, a literatura brasileira, encontrou essa resposta.

Escritor Mia Couto, durante entrevista ao Livre Opinião.
A palestra terminou com uma intensa salva de palmas. Nossa entrevista, com um forte abraço, um pedido de desculpas e um compromisso. Mia, sempre muito educado, pediu desculpas pela falta de tempo, mas a causa era nobre: o autor iria rever sua filha, que também estava no Brasil, depois de quase um ano de raros encontros. “Vamos esticar esta nossa conversa numa próxima oportunidade”, disse-nos e se deixando a disposição. Nós, do Livre Opinião, terminamos aquela terça-feira na capital paulista encantados com aquele homem. Assim como sempre nos sentimos diante de sua literatura.
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Entrevistadores: Jorge Filholini e Vinicius de Andrade.
Leia o texto “Murar o Medo”, apresentado pelo autor, na íntegra:
Murar o Medo
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demónios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre aqueles que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável castigo internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpatico avô que não deixou descendência.
O preço dessa narrativa de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A Guerra-Fria esfriou mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação. Precisamos de intervenção divina, de razões que estão para além de qualquer lógica. O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.
Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora a natureza, o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.
Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas incómodas como estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilião e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exactamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Todos sabemos como a segurança se sustenta de uma condição básica que é a justiça. Porque motivo então se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?
Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fracção pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Num planeta que nos orgulhamos de ter convertido numa única aldeia, a realidade mais globalizada é a miséria.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. A verdade é que sobre grande parte dos habitantes do Planeta pesa uma condenação antecipada pelo simples facto de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome. Como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos “outros”. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de legalidade. A incoerência revelada na chamada “primavera árabe” de intervir na Líbia e não na Síria ou no Yemen passa por um simples critério de “segurança internacional”: não tem que ser discutido.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos, do Sul e do Norte, do Ocidente e do Oriente. Acerca do medo global, Eduardo Galeano escreveu o seguinte:
Os que trabalham têm medo de perder o trabalho.
Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho.
Quem não têm medo da fome, têm medo da comida.
Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.
E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto
Intervenção no Seminário do Estoril, 2011.
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