Não adianta. Não consigo ser uma pessoa cem por cento decente. Meu psiquiatra, cheio de bom-senso de diploma e de piedade, me disse sem-piscar-os-olhos que é estatísticamente impossível recuperar toda-dignidade que eu nunca tive assim, de uma hora pra outra. Ainda está longe o dia milagroso que vou acordar um homem-ajuizado, um homem-respeitável, vou vestir meu paletó com acabamento meia-boca comprado á prestações infinitas nas Casas Bahia e vou ir trabalhar todo-saltitante com um sorriso Doriana estampado no rosto.
Respeitoso, o Doctor Fritz segurou minha clavícula com os dedos pontiagudos, com a outra mão angulosa e gelada me deu dois tampinhas solidários nas costas e me diagnosticou quase-curado. Quase-reabilitado. Quase-capacitado. Quase. Corno esse sujeito. Um prejuízo pagar consulta cara pra conseguir receitas medicas e pensar em homicídio duplamente qualificado antes mesmo de chegar na farmácia. Me sinto deslocado sendo um cidadão mediano. Ainda me faz falta a vida porca. A adrenalina a nicotina a cafeína e todas a “ínas” que couberem no dicionário.
Meus hábitos suínos continuam enquadrados no artigo 155. Eu saí da favela. Mas a favela não saiu de mim.
Meu espirito de porco aflora em dias alternados e não tem nenhuma lógica seqüencial. E na falta de um parecer definitivo de algum especialista de punho-firme, criei meu próprio diagnostico: Distúrbio de Safadeza Permanente. Alguns hábitos simplesmente se instalam como bactérias e permanecem se alimentando de você. Num súbito impulso me vem uma vontade imensurável de fazer cagada. E eu simplesmente faço. Essa adrenalina de burlar-a-lei, de pisar-na-bosta, de correr-o-risco, alimenta o menino-mau e molambento que vive acampado fazendo fogueira e tomando conhaque barato dentro de mim. Foi um título suado de conseguir. Não dá pra jogar fora o suor de anos pela janela.
Saí da consulta vazio e determinado. Cabisbaixo e endiabrado. E parti em direção ao saque.
Desci do carro um gingado descompromissado de turista-interessado-mas-nem-tanto e com pensamentos pra lá de mal intencionados. Encarei de frente o segurança paraguaio com pinta de policial-a-paisana-aposentado que cuidava inocente da porta da loja-vitima. Com míseros cinco reais trocados em moedas de cinqüenta centavos espalhados na carteira empoeirada. E um cérebro transbordando maldade. Me esquivei porta adentro. Com trejeitos de milionário-de-férias e postura de capitalista-arrogante, dei um check-up disfarçado de curiosidade nos indefesos sensores de alarme. Assobiando Jazz. Um tipinho liso, acima de qualquer suspeita.
O baque indecente do mormaço da rua com o ar condicionado de frigorifico arrebatou minha nuca numa paulada só. Me apoiei no choque térmico pra me recompor, limpei o suor-cagueta salpicado na testa, chequei os bolsos da calça e os compartimentos desnecessários da minha jaqueta de couro ecológico com um trejeito atrapalhado típico de quem acabou de perceber que deixou o molho de chaves sem-querer-querendo pendurado e balangando na porta do carro. Detectei no fundo de um dos bolsos embolorados da calça guerrilheira dois ansioliticos-milagrosos em meio a migalhas e recibos úmidos, abandonados lá por engano em algum dia em que a leseira avantajada abalou o funcionamento do meu sistema mais-que-nervoso. Era um aviso do Divino: num momento de impulso-súbito despejei as pílulas boca adentro. Meu olhar tensionado minhas sombracelhas franzidas e minha testa marcada deram uma suavizada providencial. A sorte estava do meu lado.
Com cautela caminhei desinteressado e confesso, meio-abobado, pelos corredores indiscretos de luz alógena e Camêras bisbilhoteiras. Como se eu não precisasse de nada. Como se nenhuma marca fosse boa o suficiente. Desfoquei a visão 3-D pelos objetos a fim de desvendar o roteiro maligno da filmagem interna de segurança com feição de quem está na seção errada. Consegui ser discreto. Ninguém teve a predisposição de me oferecer ajuda. Minha respiração ofegante de analista falido da bolsa-de-valores que faz pouco caso de queijo-camembert me rotulou: Comprador sem potencial. Toda situação de abandono foi favorável. Enfiei o bom-senso no compartimento secreto e sem fundo da calça desbotada, coincidentemente o mesmo forro-furado onde se escondia tímida e contraída toda minha diluída-dignidade. E dei inicio ás supostas compras.
Lá estavam eles. Todos aqueles produtos desnecessários na minha lista-questionável de prioridades de furto. Uma seleção minuciosa de delicias que eu jamais compraria. Sopa de barbatana de tubarão-extinto, formigas Africanas caramelizadas, caviar escargot coisas gelatinosas e cia. Iguarias refinadas de textura suspeita a preço de diamante. Guloseimas suíças feitas com leite de vacas super-dotadas criadas na base de farelo de ouro. Míni pedaços de queijos fedidos de aparência estragada. Produtos de higiene muito-íntima. Um banquete de inutilidades pelas quais eu jamais gastaria meus míseros trocados. Camuflei a cesta de compras com um saco grande de pão francês e um pacote honesto de bolinhas higiênicas de algodão colorido para tirar maquiagem do rosto, e embora esse erro de cálculos pudesse ter me prejudicado, a excessiva esquisita e tão atual metrosexualidade masculina estava ao meu lado. O disfarce foi perfeito. Fui lotando gradativamente os vãos da cesta com as inutilidades mais descabidas: Patês grudentos de animais excêntricos, chocolates nórdicos hiper-calóricos, queijos com cheiro de chulé de adolescente, gilete 12 lâminas com lanterna alarme e espelho para peles esculhambadas e extra-sensíveis, camisinha texturizada sabor desejo, branqueador hiper luminoso para dentes empobrecidos pela santa-nicotina, desodorante Axé cheiro macho-de-padaria, pilhas-palito, balas anti-bafo-de onça, pregadores de roupas customizados e um saco de pão de queijo recheado de catupiry porque eu ainda não tinha tomado um breakfast devidamente engordurado.
Meus passos compassados ás batidas do coração. A deliciosa sensação de fazer cagada faziam meus pés formigarem e minha boca espumar. Em mim, qualquer “ína” tinha o dom de se transformar em coisa ilegal. Me dirigi confiante ao único ambiente em que as câmeras intromeditas de segurança não vigiavam absolutamente nada: o freezer de frango. Coxas sobrecoxas asinhas peito-sem-pele e nuggets de pescoço de galo. Filé, cubinhos e pintinho moído. Frango é um bicho horrível até plastificado sem pena e desossado. Um horror. Ninguém rouba frango. De frango a gente tem dó. E olhe lá.
Durante quatro minutos abri e fechei a porta do refrigerador compulsivamente enquanto minhas mãos rápidas e indiscretas abarrotavam meus compartimentos secretos. Pelo meu radar detector de caguetas de plantão localizado na nuca, me certifiquei do sucesso absoluto da empreitada. Só o saco de pão de queijo que deu trabalho porque estava congelado e grudou nos pentelhos enrolados do sovaco.
Pronto.
Me dirigi á fila do caixa-rápido transbordando satisfação e adrenalina. Eu me sentia mais-que-vivo. Imbatível. Como se não houvesse amanhã.
Passei o pão e as bolinhas de algodão focado exclusivamente na respiração ofegante da gorducha simpática e com bigodes salpicados no buço, que cuidava espaçosa do caixa. Vai-que ela tinha notado o desfalque, vai-que tinha sido avisado pelo microfone e estava disfarçando, vai-que tinha percebido minha jaqueta toda-estufada dos lados. Vai-que o segurança aposentado era um tira disfarçado e estava me armando uma presepada na saída do estacionamento, uma cilada, será que a minha mãe já tinha sido avisada?
– 4,99, dinheiro ou cartão?
Despejei as moedas no balcão. Empacotei as compras. Peguei um saco extra para empacotar a porcariada antes de chegar em casa pra ninguém desconfiar da minha-vida dupla. Assobiando pantera cor-de-rosa, marchei esbelto e malandro até o carro-cúmplice.
As pernas dormentes. O trapézio travado. O pão de queijo ensopado.
Exausto, abri as janelas tirei o tênis arranquei a jaqueta e saboreei satisfeito a endorfina deliciosa deslizando impune pelas minhas veias gastas e semi-obstruídas. Saquei mais dois calmantes do porta-luva e mastiguei sem água.
Dei partida no carro.
Eu, e minha dose medicinal indispensável de cagada diária.
Homens de terno, respeitáveis, com uma vida e tanto pela frente. Deus, não fui eu quem pediu, tá?