A onda de discussões sobre as feministas universitárias em São Carlos tem se tornado cada vez mais comum em meu ouvido. Seja no bar, no restaurante ou mesmo entre os corredores dos prédios, durante as aulas, muitos comentam “essas feministas daqui estão viajando, não passam de umas feminazis”.
Tenho convivido pouco dentro do espaço universitário e, infelizmente, não sou o melhor exemplo para falar da luta política hoje dentro do campus. Mas sou mulher, sou também universitária e, como feminista, acredito que essas falas não sejam coisas que devem passar despercebidas. Acredito que seja reflexo de uma série de equívocos, falta de uma verdadeira luta feminista, além dos velhos preconceitos instaurados na sociedade brasileira.
Uma mulher universitária conquistou e conquista cotidianamente suas lutas enquanto mulher, mesmo sem se intitular como feminista. O espaço universitário, mesmo com suas contradições, dá um mínimo de condições para que essas mulheres possam fazer valer suas vozes e serem, minimamente, ouvidas. Sejam em discussões nos espaços políticos, como no DCE, ou mesmo na pesquisa acadêmica, os estudos, as reflexões, as produções, a mulher tem certa liberdade para levantar sua voz.
O paradoxo é que a mulher universitária, enquanto universitária, vive um mundo a parte da realidade brasileira. Ao sair dos seus espaços blindados, a mulher universitária torna-se apenas mulher, assim como todas as outras. As discussões, reflexões e estudos que ela fazia dentro da academia pouco tem relação com a vida fora das grades acadêmicas.
E essa mulher acaba vivendo uma dupla vida, certas liberdades dentro do espaço universitário e uma série de privações fora desses espaços. Um exemplo bem simples e genérico é a liberdade do “ir e vir”. Ainda que o campus da UFSCar não seja seguro, eu, enquanto mulher, me proponho a andar por ele à noite, mesmo com medo. Fora do campus, faço de tudo para que alguém me acompanhe, ou deixo de passar pelo lugar.
Mas e quando as ditas “liberdades” começam a se mostrar mentirosas e hipócritas, até mesmo dentro de um campus universitário, o que devemos fazer?
Não podemos nos esquecer de que um campus universitário também faz parte da sociedade. E, por mais diferenças que possa existir, ainda sim ele reflete o que vivemos. O que dizer das festas de recepção dos bixos no início de todo ano, em que presenciamos inúmeros casos de violência contra a mulher? O que dizer dos casos de estupros e assédios, que se tornaram tão comuns nesses espaços?
Rituais violentos que estão tão arraigados na vida universitária que nós, enquanto universitári@s, nem percebemos que fazemos parte desse jogo de poder homem versus mulher, onde o homem universitário também quer mostrar o seu poder de macho, coagindo e violentando as mulheres universitárias.
Esse é apenas um dos inúmeros exemplos.
Mas não falemos aqui de exemplos cotidianos de décadas. Falemos aqui sobre o que vem acontecendo no campus da UFSCar nos últimos meses.
Assim que você chega no campus e vai ao banheiro, por exemplo, encontra um cartaz, dizendo: “Não é não!”. Nos muros, outra frase também se mostra “Lésbicas não existem para a sua punheta”. Sempre que passo por um cartaz, encontro alguém comentando “essas mina estão loucas”.
Será, porém, que essas “mina” estão realmente loucas? Será que essas mulheres universitárias estão realmente fora da realidade brasileira, de violência e opressão contra as mulheres?
Se pensarmos no espaço universitário enquanto reflexo de qualquer outro espaço da sociedade, entendemos que elas não estão loucas, pelo contrário. Infelizmente, estamos no século XXI e ainda convivemos com os exemplos mais retrógrados e preconceituosos sobre a mulher. E com as bancadas evangélicas fundamentalistas no poder, cada vez mais fortes, a tendência é que os conflitos se intensifiquem.
A mulher universitária é também mulher, aquela que tem que provar diariamente que tem condições de estar no espaço em que deseja, não no espaço em que é colocada. A mulher universitária é colocada à prova diariamente da sua intelectualidade, suas sabedorias, e as que hoje, como eu, trabalham com questões de gênero, essas são guetizadas, como se isso só fizessem sentido para nós, que passamos pela opressão.
A luta da mulher universitária é uma luta correta e necessária. Em um mundo universitário, onde os maiores pensadores ainda são homens, a mulher ainda busca o seu espaço, enquanto subalterna, enquanto outro, como dizia Simone de Beauvoir na década de 50 do século passado. A luta feminista dentro desses espaços é sim mais do que necessária.
O problema aqui, acredito, seja como essa luta é conduzida. E, para isso, é preciso entender o que é uma luta feminista, e quais os caminhos para que a igualdade de direitos, respeitando suas diferenças, seja concretizada.
O feminismo tem diversas correntes. Hoje, no Brasil, existe a corrente crítica, aquela em que as feministas, enquanto pensadoras, produzem reflexões e discussões a partir do espaço acadêmico, por exemplo; Existe, também, o feminismo nos espaços partidários. Geralmente, mais comuns nos partidos políticos de esquerda, mas com pautas muito parecidas e genéricas, não construindo espaços de luta efetivas, onde as mulheres vivem; E há ainda o feminismo dentro dos movimentos sociais, e estes são muitos, inúmeras correntes, inúmeras formas de luta. Um exemplo é a União da Mulheres, uma associação de mulheres que tem sede em São Paulo e tem como integrantes ex-combatentes do período da Ditadura Militar, como Amélinha Teles, que racharam também com os partidos políticos de esquerda, propondo uma luta feminista autônoma, livre das pautas impostas por esses partidos. A União de Mulheres propõe discussões mais efetivas de luta, como o curso de Promotoras Legais, que qualquer mulher pode fazer, independente da sua profissão e escolaridade, além de ser um grupo agente na comissão da verdade.
As feministas brasileiras de hoje estão, basicamente, dentro desses espaços de luta. E, se são espaços diversificados, ficaria muito difícil criticar uma ação feminista particular, visto que as mulheres de hoje lutam, pensam e agem de formas diferentes. É preciso, por isso, um pouco de cautela e respeito por essas diferentes correntes e formas de pensamento.
Mas o que é também muito importante, dentro da luta feminista, e isso afeta qualquer mulher que se intitule feminista, é conhecer a história do movimento, estudar, refletir muito, observar, para depois começar a agir. Afinal, uma ação feminista só existe a partir de uma reflexão anterior.
A palavra feminismo quase se torna obsoleta nessa discussão. Quantas são as mulheres que se intitulam feministas e não conhecem sua própria história? Ou quantas mulheres que não se intitulam feministas, inclusive acham o feminismo uma bobagem, mas que também não conhecem sua própria história?
A grande bandeira do feminismo é conhecer a nossa própria história, enquanto mulher no Brasil, e no desenvolvimento histórico como um todo. E como vamos conhecer a nossa história? O estudo, neste sentido, é fundamental. A pesquisa é fundamental. As discussões em variados espaços também são fundamentais.
As ações efetivas só chegam depois deste longo processo. E isso não é simples. Para que uma ação feminista seja integradora, respeitando a ideia de que o feminismo vem para libertar e não para segregar, é preciso todo um trabalho individual, nos estudos, nas reflexões, no conhecimento de sua própria história, porque isso será a base concreta para que as ações sejam construídas de forma lúcida e firme.
Uma mulher brasileira que se intitule feminista tem o dever de conhecer sua história. E sua história está ligada à Bertha Lutz, Luisa Mahin, Carlota Pereira de Queiróz, Raquel de Queiróz, Rose Marie Muraro, Sueli Carneiro, Carolina Maria de Jesus, Amelinha Teles, Maria da Penha, entre tantas outras brasileiras que fizeram e fazem parte da reescrita da história do Brasil, colocando a mulher como protagonista da História com H maiúsculo.
Essas mulheres mostram que a luta feminista é mais do que dar voz à mulher, subalternizada e oprimida em seus espaços, mas construir um espaço de igualdade, frente às nossas diferenças.
E, então, nos perguntamos, será que as mulheres universitárias que se intitulam feministas e que colam cartazes agressivos nos espaços universitários, propondo que coloquemos os nomes dos nossos agressores nas portas dos banheiros, estão construindo um espaço de igualdade? Será que existe por trás desses cartazes um real projeto feminista, resultado de estudos, reflexões e discussões? Por enquanto, nós, mulheres e homens universitários que não conhecemos essas mulheres, não sabemos.
O que sabemos é que o clima está cada vez mais tenso e nebuloso. Alguns, cochicham que a situação só tende a piorar e que as consequências serão devastadoras. Outros, ainda continuam rindo, entendendo essas ações como “molecagem de menininhas más”.
Sendo certo ou não, é preciso sempre se lembrar das pensadoras que trouxeram toda a história da opressão da mulher, como Simone de Beauvoir e Virgínia Woolf, para fundamentar que as ações feministas devem ser integradoras. Afinal, nós mulheres fazemos ou não parte de uma sociedade heterogênea?
Larissa Lisboa
Blog: Diabólicas
A maior parte das figuras históricas do feminismo acima citadas são desprezadas pelas militantes do movimento misândrico que infelizmente grassa pela Federal, Solanas é a figura referência e o sectarismo com as demais correntes do feminismo é nítida. A prática de ação desse grupo, que como os judeus ortodoxos embora sejam um minoria causam muita comoção, tem sido de um modo geral rechaçada pelas feministas históricas mais sérias e comprometidas. Além de afastar todos os homens que tentam lutar para desconstruir seu machismo sob a alegação que eles já estão de antemão “condenados” ao machismo, lincham publicamente via facebook ou nas portas dos banheiros todos aqueles que não concordam com a misandria sectária e que não dialoga senão com o próprio umbigo, taxando-os de abusadores ou defensores de estupradores. Lamentável e um retrocesso para a causa que até então estava crescendo e tendo uma adesão substancial de mulheres e homens. Hoje é o medo das acusações inquisitoriais e a opressão revertida. Sad but true. :(
Muito bom o artigo. Serve para mostrar que a lucidez que anima movimentos sociais, como o feminismo, por exemplo, pode conter pontos cegos, o que coloca desafios “internos” a esses movimentos. Mesmo que o feminismo e suas facções tenha avançado muito, se comparado há uma década, que seja, certamente ainda não se atingiu um tipo de sociedade “heterogênea” com um grau de desenvolvimento que pudesse tornar esses movimentos supérfluos. Cumprimentos à autora.
É importante se pontuar mesmo o óbvio em momentos como esse. As “feministas” da tal corrente “extremista” estão colocando o DCE sob o risco responder a processos judiciais por se omitir diante da prática de crimes de calúnia e difamação mantidos em espaço público sob responsabilidade do mesmo DCE. Sem contar que diz-se que membros desse “grupo feminista” compõe a atual Diretoria do DCE. Não verifiquei, mas não seria mais bonito, e humano e correto, criarem um espaço (ainda que provisório) para a coleta de denúncias ou promoverem ciclos de debates sobre a violência contra a mulher no campus? Não seria melhor orientar as mulheres a denunciarem seus agressores antes de os esculacharem como se já estivessem formalmente respondendo por “crimes” que não são comprovados? É uma pena um grupelho que se diz libertário querer “vencer” no grito, justificar a ação arbitrária embasado no argumento de que “os fins justificam os meios”, arvorando-se para afirmar que “agora o debate existe no campus”. MENTIRA! O debate sempre existiu no campus e fora dele, mas ações impensadas como essa (“ação direta” para algumas) segregam as pessoas e propagam um discurso perigoso de defesa da “justiça feita pelas próprias mãos”… Muita imaturidade.