“Como te amar, sem nunca merecer?”: Cinco poemas de Hilda Hilst

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Hilda Hilst (Foto: Divulgação)

Em 2004, no dia 4 de fevereiro, falecia a poeta Hilda Hilst. Considerada uma das maiores escritoras de língua portuguesa, Hilst também publicou ensaios, crônicas e peças.

Premiada em diversas áreas, Hilst construiu um estilo literário que explora a sexualidade e a relação humana. Com Presságio (1950) e Balada de Alzira (1951), Hilda inaugura sua carreira na literatura. Não ficou apenas na lírica e escreveu ficção, como os textos Fluxo – Floema (1970), o aclamado O Caderno Rosa de Lory Lamby (1990) e Cascos e Carícias, com crônicas reunidas no período de 1992 a 1995. No teatro, Hilda escreveu a O Rato no Muro (1967), O Visitante (1968), além da premiada O Verdugo, de 1969.

Hilda Hilst faleceu aos 73 anos. O amigo da poeta, Mora Fuentes, liderou a criação do Instituto Hilda Hilst., centro de estudos dos trabalhos da escritora, localizado na Casa do Sol, em Campinas (SP).

O Livre Opinião tem o prazer de homenagear Hilda Hilst selecionando cinco poemas da escritora, que deixou sua marca na Literatura.

Alcóolicas

É crua a vida. Alça de tripa e metal.

Nela despenco: pedra mórula ferida.

É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.

Como-a no livor da língua

Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me

No estreito-pouco

Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida

Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.

E perambulamos de coturno pela rua

Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.

E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima

Olho d’água, bebida. A Vida é líquida.

(Alcoólicas – I)

* * *

Também são cruas e duras as palavras e as caras

Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida

Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos

Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes

Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos

Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas

De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo

Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas

Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento

Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte

É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.

Sussurras: ah, a vida é líquida.

(Alcoólicas – II)

* * *

E bebendo, Vida, recusamos o sólido

O nodoso, a friez-armadilha

De algum rosto sóbrio, certa voz

Que se amplia, certo olhar que condena

O nosso olhar gasoso: então, bebendo?

E respondemos lassas lérias letícias

O lusco das lagartixas, o lustrino

Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos

E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.

Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me

Na noite navegada, e rio, rio, e remendo

Meu casaco rosso tecido de açucena.

Se dedutiva e líquida, a Vida é plena.

(Alcoólicas – IV)

* * *

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito

Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado

Salpicado de negro, de doçuras e iras.

Te amo, Líquida, descendo escorrida

Pela víscera, e assim esquecendo

Fomes

País

O riso solto

A dentadura etérea

Bola

Miséria.

Bebendo, Vida, invento casa, comida

E um Mais que se agiganta, um Mais

Conquistando um fulcro potente na garganta

Um látego, uma chama, um canto. Amo-me.

Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos

Quando não sou líquida.

(Alcoólicas – V)

Do Desejo

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

(Do Desejo – 1992)

* * *

Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem.

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

( Do Desejo – 1992)

* * *

Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?

(Da Noite – 1992)

 

Bufólicas

Cantava tão bem

Subiam-lhe oitavas

Tantas tão claras

Na garganta alva

Que toda vizinhança

Passou a invejá-la.

(As mulheres, eu digo,

porque os maridos

às pampas excitados

de lhe ouvir os trinados,

a cada noite

em suas gordas consortes

enfiavam os bagos).

Curvadas, claudicantes

De xerecas inchadas

Maldizendo a sorte

Resolveram calar

A cantora gritante.

Certa noite… de muita escuridão

De lua negra e chuvas

Amarraram o jumento Fodão a um toco negro.

E pelos gorgomilos

Arrastaram também

A Garganta Alva

Pros baixios do bicho.

Petrificado

O jumento Fodão

Eternizou o nabo

Na garganta-tesão… aquela

Que cantava tão bem

Oitavas tão claras

Na garganta alva.

Moral da estória:

Se o teu canto é bonito,

Cuida que não seja um grito.

(Bufólicas – 1992)

* * *

FILÓ, A FADINHA LÉSBICA

Ela era gorda e miúda.

Tinha pezinhos redondos.

A cona era peluda

Igual à mão de um mono.

Alegrinha e vivaz

Feito andorinha

Às tardes vestia-se

Como um rapaz

Para enganar mocinhas.

Chamavam-lhe “Filó, a lésbica fadinha”.

Em tudo que tocava

Deixava sua marca registrada:

Uma estrelinha cor de maravilha

Fúcsia, bordô

Ninguém sabia o nome daquela cô.

Metia o dedo

Em todas as xerecas: loiras, pretas

Dizia-se até…

Que escarafunchava bonecas.

Bulia, beliscava

Como quem sabia

O que um dedo faz

Desde que nascia.

Mas à noite… quando dormia…

Peidava, rugia… e…

Nascia-lhe um bastão grosso

De início igual a um caroço

Depois…

Ia estufando, crescendo

E virava um troço

Lilás

Fúcsia

Bordô

Ninguém sabia a cô do troço

Da Fadinha Filô.

Faziam fila na Vila.

Falada “Vila do Troço”.

Famosa nas Oropa

Oiapoc ao Chuí

Todo mundo tomava

Um bastão no oiti.

Era um gozo gozoso

Trevoso, gostoso

Um arrepião nos meio!

Mocinhas, marmanjões

Ressecadas velhinhas

Todo mundo gemia e chorava

De pura alegria

Na Vila do Troço.

Até que um belo dia…

Um cara troncudão

Com focinho de tira

De beiço bordô, fúcsia ou maravilha

(ninguém sabia o nome daquela cô)

Seqüestrou Fadinha

E foi morar na Ilha.

Nem barco, nem ponte

O troncudão nadando feito rinoceronte

Carregava Fadinha.

De pernas abertas

Nas costas do gigante

Pela primeira vez

Na sua vidinha

Filó estrebuchava

Revirando os óinho

Enquanto veloz veloz

O troncudão nadava.

A Vila do Troço

Ficou triste, vazia

Sorumbática, tétrica

Pois nunca mais se viu

Filó, a Fadinha lésbica

Que à noite virava fera

E peidava e rugia

E nascia-lhe um troço

Fúcsia

Lilás

Maravilha

Bordô

Até hoje ninguém conhece

O nome daquela cô.

E nunca mais se viu

Alguém-Fantasia

Que deixava uma estrela

Em tudo que tocava

E um rombo na bunda

De quem se apaixonava.

Moral da estória, em relação à Fadinha:

Quando menos se espera, tudo reverbera.

Moral da estória, em relação ao morador

da Vila do Troço:

Não acredite em Fadinhas.

Muito menos com cacete.

Ou somem feito andorinhas

Ou te deixam cacoetes.

( Bufólicas – 1992)

Trovas de muito amor para um amado senhor

Nave

Ave

Moinho

E tudo mais serei

Para que seja leve

Meu passo

Em vosso caminho.

(I)

* * *

Dizeis que tenho vaidades.

E que no vosso entender

Mulheres de pouca idade

Que não se queiram perder

É preciso que não tenham

Tantas e tais veleidades.

Senhor, se a mim me acrescento

Flores e renda, cetins,

Se solto o cabelo ao vento

É bem por vós, não por mim.

Tenho dois olhos contentes

E a boca fresca e rosada.

E a vaidade só consente

Vaidades, se desejada.

E além de vós

Não desejo nada.

(XIII)

Dez Chamamentos Ao Amigo

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

A Obscena Senhora Silêncio

Assista ao vídeo A Obscena Senhora Silêncio, documentário que conta um pouco da história de Hilda Hilst, com relatos de conhecidos da poeta e da própria Hilda, na Casa do Sol, lugar em que viveu se dedicando à literatura.

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