Difícil. Esta foi a palavra que nos veio à mente quando lemos, pela primeira vez, ainda nos tempos do ensino médio, Macunaíma, de Mário de Andrade. Éramos jovens e, para quem já pôde trabalhar com literatura em sala de aula, sabe que as reações dos alunos quando leem Mário – pela primeira, segunda ou infinitas vezes – não são diferentes daquela que tivemos. Tanto tempo passou e aquele livro terrível de entender em nossa juventude, dum herói que é índio, é negro, é loiro e é brasileiro e que, ao mesmo tempo, não é nada disso.
Difícil. A mesma palavra que se fixou em nossa mente há dez anos, agora volta a nos assombrar. Incumbidos de escrever um artigo sobre os 70 anos da morte do maior escritor modernista brasileiro, completados exatamente no dia 25 de fevereiro, nos sentimos outra vez tomados por essa palavra: difícil.
Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
[…]
(“Lundu do Escritor Difícil”, A Costela de Grão Cão).
Difícil e abusado. Já começa fazendo a gente procurar o que é enquizila no dicionário – e, para quem, como nós, fez isso num volume impresso e não num dos facílimos dicionários online, vai sentir o deboche. É difícil, é abusado e é sabido. Apenas nesta, que é a primeira estrofe do poema, apesar de “sambar na nossa cara”, ao mesmo tempo nos mostra a chave mestra para compreender toda sua obra: “É só tirar a cortina/ Que entra luz nesta escurez”.
Hoje, diferentemente de dez anos atrás, já não temos mais essa cortina à nossa frente. Rasgamos um retalho, bem miúdo, mas suficiente para entrar um pouco de luz – só para ele debochar. Ler Mário de Andrade é assim, tem que ter paciência e cuidado para não ficar temperamental. A cortina abre um pouco a cada leitura, mas, vira e mexe, ela volta e fecha no mesmo lugar. Não é brincadeira. Já encucamos tanto que até pensamos que a muiraquitã sempre foi dele e ficou lá, guardada numa de suas gavetas, depois que levantou da rede e foi descansar.
Porém é o que se espera de alguém desta envergadura. Mário foi, durante muitos anos, uma das figuras centrais da vanguarda artística brasileira – senão a figura central. Esteve envolvido, durante toda sua vida, com tudo o que havia relacionado ao modernismo em São Paulo, exercendo uma influência tremenda nas gerações que viriam a segui-lo. Mário, apesar de mais conhecido como romancista e poeta, também era músico, ensaísta e fotógrafo. Suas pesquisas sobre a música e o folclore do Brasil foram publicadas (Editora Sesc) e uma exposição com suas fotos percorreu o país recentemente. Aí ele nos vem enquizilar novamente: em sua época, foi um dos mais conhecidos polímatas brasileiro.
Foi também ele a força central que moveu a emblemática Semana de Arte Moderna de 1922, a semana que viria a mudar para sempre os parâmetros e ideais por trás das artes no país. Culpa do Grupo dos Cinco (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti). Tudo botado lá, no “Prefácio Interessantíssimo”.
Macunaíma é sem dúvida sua obra mais famosa e talvez a mais poderosa. Impossível não nos lembrarmos das aulas de literatura contemporânea na universidade, quando então buscávamos uma definição para o livro: rapsódia, colcha de retalhos, a busca da identidade, o anti-herói. Toda essa antropofagia que é o Macunaíma, buscando sua muiraquitã, e que somos nós, percebendo-nos no mundo da identidade, sem identidade, nada fixo. “O herói sem nenhum caráter” – ou, para quem teve a oportunidade de por as mãos na primeira edição do livro: “sem nenhum caracter”. Nem uma letra, nenhum caractere que possa descrevê-lo, representá-lo, senão ele próprio.
[…]
Não carece de vestir tanga
Pra penetrar meu caçanje!
Você sabe o francês “singe”
Mas não sabe o que é guariba?
– Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
Não é atoa que o escritor foi escolhido o homenageado da edição 2015 da FLIP. Nem é atoa tanto apreço pelo autor. Além de Macunaíma (1928), talvez seu livro mais conhecido, que ganhou a adaptação para o cinema nas mãos de Joaquim Pedro de Andrade e imortalizou Grande Otelo no papel de Macunaíma, Mário publicou mais de 30 obras. Paulicéia Desvairada (1922) marcou época como uma das obras mais importantes do modernismo.
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Mário de Andrade: reinventando o Brasil (Mestres da Literatura)
Provocações – Mário de Andrade
Iara Rennó – Macunaíma
Maria Bethânia – Salve as Folhas / O Descobrimento, de Mário de Andrade
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