“Levantado do Chão”, de José Saramago, 35 anos depois – Uma saga de portugueses pela terra a conquistar

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Este texto é para Teresa Cristina Cerdeira, mestra que, em 1991, me desafiou a realizar uma Iniciação Científica com um romance de José Saramago, apresentando-me um universo sedutor do qual nunca consegui me afastar.

“Aqui o mar acaba e a terra principia”.

[JOSÉ SARAMAGO. O ano da morte de Ricardo Reis.]

 José  Saramago  no  SESC

O ano de 2015 começa triste para Portugal. Logo nos seus primeiros meses, duas perdas irreparáveis. Uma, na poesia: Herberto Helder. Outra, no cinema: Manoel de Oliveira. Apesar da ausência física destes grandes mestres, ainda há motivos para erguer a cabeça e comemorar a passagem desta importante efeméride. Primeiro, porque, conforme já assinalamos na coluna de janeiro, estamos no ano do Centenário da Geração de Orpheu. Segundo, e não menos importante, porque celebramos os 35 anos de publicação de um dos romances mais emblemáticos da literatura portuguesa contemporânea. Trata-se, como o título já aponta, de Levantado do Chão, de José Saramago.

Nome que dispensa quaisquer apresentações, o autor português aqui em foco possui uma das mais bem sucedidas trajetórias literárias. Poeta (condição surgida muito mais por questões sentimentais, como ele mesmo declarara em entrevista a Carlos Reis), dramaturgo, cronista, contista e, acima de tudo, romancista, José Saramago colecionou reconhecimentos e prêmios, tais como o Prémio Camões, em 1995, e, depois, a consolidação internacional com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Dono de um discurso incisivo e crítico, sobretudo quando o assunto é a Igreja ou os desmandos do Estado ou de qualquer outra força impositiva, seus textos constituem a melhor herança do pensamento deste intelectual do mundo das Letras. É bem conhecida, por exemplo, a polêmica sobre sua mudança para a Ilha de Lanzarote, depois do infeliz episódio com o Sub-Secretário de Estado Adjunto da Cultura de Portugal, Sousa Lara, quando este vetou, em 1991, a inclusão do romance O evangelho segundo Jesus Cristo numa lista de títulos portugueses para concorrer a um prêmio literário europeu. Não vou entrar nesta celeuma porque as críticas que foram tecidas contra a obra de Saramago (se é que podemos chamar aos arroubos publicados na mídia de crítica!), além de nada representarem de positivo ou terem qualquer tipo de acréscimo em termos de debate e reflexão, são resultados de uma completa ignorância inquisitória, sem falar de um total desconhecimento da obra e dos aspectos estéticos que permeiam o projeto criador do escritor português.

Fato é que – gostem ou não das suas idéias, apreciem ou não a sua maneira de escrever – José Saramago foi o homem que colocou Portugal no mapa do Nobel e consolidou a língua portuguesa como um veículo de transmissão de conhecimento e de trabalho artístico com a palavra nos meios midiáticos. Não será à toa neste sentido que, no filme Língua – Vidas em português (2008), do diretor Victor Lopes, ao falar sobre a Língua Portuguesa, mote condutor do documentário, o autor de Levantado do chão cite exatamente o Pe. António Vieira, um dos mestres da parenética e da articulação discursiva em português, como uma das suas referências primordiais quando se fala em criação literária.

Mas, antes deste Saramago polêmico e vencedor do Prêmio Nobel – condição que o catapultou para um mundo de agitações celebrativas, feiras, congressos e inúmeros eventos internacionais, ocupando praticamente toda a sua agenda –, a imagem que tenho do autor do Memorial do Convento (texto, aliás, que tenho guardado a sete chaves, porque fora autografado pelo próprio escritor, em 1987, na Faculdade de Letras da UFRJ) é menos distante, porque, antes de toda esta pressão do mercado editorial, era possível sentar-se numa poltrona do Setor de Literatura Portuguesa (na UFRJ) e tomar um gostoso café com ele, conversando sobre assuntos que iam desde a situação contemporânea dos autores portugueses até coisas superficiais, do dia-a-dia, e sem importância imediata

Meus professores da época, Luci Ruas, Gilda Santos e Teresa Cristina Cerdeira, e minha colega de graduação e hoje também professora da UFRJ, Monica Figueiredo, devem se lembrar bem desta imagem. De espírito jovial, excelente contador de histórias, Saramago seduzia os seus admiradores pela forma sempre atenciosa e generosa com que se dirigia e com eles falava. Anos mais tarde, em 2000, no lançamento de A caverna, no Museu Histórico-Nacional, no Rio de Janeiro, tive a oportunidade de sentar-me na primeira fileira ao lado da grande mestra e leitora da obra do escritor português, Teresa Cristina Cerdeira. Ouvimos, impressionados, o autor discutir uma série de assuntos que abordava no romance. No fim, uma fila gigantesca para obter o autógrafo de José Saramago. De minha parte, saí muito satisfeito, porque, além de receber um caloroso aperto de mão, ainda tive os meus exemplares do romance lançado e d’O evangelho segundo Jesus Cristo devidamente assinados por ele.

Casou-se, em 1988, com a jornalista, escritora e tradutora espanhola Pilar del Rio, atualmente, responsável pelo acervo do escritor e pela presidência e condução da Fundação José Saramago, espaço propagador da obra saramaguiana. Da criteriosa guardiã dos escritos de Saramago, guardo uma imagem singular. No lançamento de A estátua e a pedra (2013), em Lisboa, tive a oportunidade de ouvir uma Pilar del Rio emocionadíssima, mas visivelmente disposta a não deixar morrer os ideais defendidos pelo seu marido. Criada em 2007, a Fundação tem com principais preocupações as de defender e de difundir os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, além de se deter e discutir alguns problemas do meio ambiente, temas, aliás, muito recorrentes nas crônicas escritas por ele, de 2008 a 2009, reunidas na coletânea O caderno (2009).

Confesso que sempre tive muita resistência à maneira peculiar com que ele concebia a matéria discursiva dos seus romances. Talvez, pelo fato de, naquela época (finais dos anos de 1980 e início dos anos de 1990), estar mais envolvido com a leitura de dois outros grandes nomes da ficção portuguesa: Jorge de Sena e Vergílio Ferreira. Foi preciso, portanto, vencer o desafio de enfrentar uma Iniciação Científica com História do cerco de Lisboa, em 1991, sob a orientação da mestra Teresa Cristina. Não foi fácil, e ela bem deve se lembrar do trabalho que dei. Mas, tempos depois, ao ganhar da minha orientadora naquele ano a mais recente publicação de Saramago (O evangelho segundo Jesus Cristo), tive de dar a mão à palmatória, porque estava, realmente, diante de um grande escritor. Não tenho a menor dúvida em afirmar que foi exatamente O evangelho que me deixou de joelhos prostrados numa reverência inconteste ao seu autor. Ainda hoje, quando me perguntam sobre a minha obra preferida, não hesito em dizer que, neste romance, José Saramago atinge um grau de excelência dificilmente comparável.

Talvez, por isso, por causa do meu enlevo quase que feroz e exacerbado com O evangelho, eu não tenha morrido de encantos por Levantado do chão. Para variar, com a minha implicante resistência, achava aquele enredo sobre uma família do Alentejo, voltando a antigos motes do romance português da virada da segunda metade do século XX, por demais ultrapassado. Ledo engano meu, e ainda bem. Foi, anos mais tarde, com a releitura da Tese de Doutorado de Teresa Cristina Cerdeira – aliás, é preciso frisar, a primeira obra acadêmica publicada a tratar de maneira alentada a ficção do autor em foco –, que dei conta da minha completa ignorância em relação ao texto de Saramago.[1]

A idéia de pensar as dificuldades daqueles que, no campo, produzem e fornecem a mão de obra para sustentar a ostentação de certos mandatários do poder não se reduz exclusivamente a uma certa literatura panfletária. E o fato de Saramago olhar para o latifúndio, aquele mar de terra interior no espaço português, como o novo espaço das viagens (anti?)épicas e da saga de muitos portugueses, sem nomes nobres, sublinha a necessidade de a literatura não se afastar de temas atuais, ainda que, muitas vezes, eles causem um certo incômodo, sobretudo, porque põem a nu uma ferida ainda aberta e que precisa ser tratada:

O que mais há na terra, é paisagem. Por muito do resto que lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda. Será porque constantemente muda: tem épocas do ano em que o chão é verde, outras amarelo, e depois castanho, ou negro. E também vermelho, em lugares que é cor de barro ou sangue sangrado. Mas isso depende do que no chão se plantou e cultiva, ou ainda não, ou não já, ou do que por simples natureza nasceu, sem mão de gente, e só vem a morrer porque chegou seu último fim. Não é tal o caso do trigo, que ainda com alguma vida é cortado. Nem do sobreiro, que vivíssimo, embora por sua gravidade o não pareça, se lhe arranca a pele. Aos gritos.

Não faltam cores a esta paisagem. Porém, nem só de cores. Há dias tão duros como o frio deles, outros em que se não sabe de ar para tanto calor: o mundo nunca está contente, se o estará alguma vez, tão certa é a morte. E não faltam ao mundo cheiros, nem sequer a esta terra, parte que dele é e servida de paisagem. Se no mato morreu animal de pouco, certo que cheirará ao podre do que morto está. Quando calha estar quieto o vento, ninguém dá por nada, mesmo passando perto. […] Tanta paisagem. Um homem pode andar por cá uma vida toda e nunca se achar, se nasceu perdido. E tanto lhe fará morrer, chegada a hora. […]

De guerra e outras pestes se morreu muito neste e mais lugares da paisagem, e no entanto quanto por aqui se vai vendo são vivos: há quem defenda que só por mistério insondável, mas as razões verdadeiras são as deste chão, deste latifúndio que por corcova de cima e plaino de baixo se alonga, aonde os olhos chegam. (SARAMAGO, 1989, p. 11-12)

Toda esta primeira sequência do romance atrai a atenção do leitor para uma paisagem viva e extremamente agressiva ao homem. Dura, por vezes cruel, perceptível a olho nu, a geografia sublinhada pelo narrador traduz as cores e os cheiros que a rudeza da terra imprime sobre o homem. Ainda assim, não se pode simplesmente tapar a vista e apagar esta paisagem do mapa, até porque, “por corcova de cima e plaino de baixo”, não há como não observar os alongamentos do horizonte oferecidos aos olhos.

Se é certo que a partilha desigual da terra, as injustiças e as diferenças sociais ainda são pontos de pauta a serem interrogados naquele Portugal do início da década de 1980, que ainda vivia uma certa expectativa de resultados mais esperançosos, passados mais de 5 anos da Revolução dos Cravos, não se pode esquecer que, para além destes aspectos extratextuais, correlacionados ao contexto político e econômico do país, Saramago revisita não apenas um passado recente do cenário nacional, mas revigora, numa salutar e bem acabada homenagem, a tradição cultural da ficção do Neo-Realismo literário português.

Momento crucial na virada dos anos de 1940 e 1950, foi o grupo composto por escritores como Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes e Manuel da Fonseca o grande responsável por despertar um desassossego latente em relação aos problemas correntes nas regiões interioranas do território português, sobretudo no Alentejo. Ainda que as presenças de uma Agustina Bessa-Luís (com A Sibila, em 1954) e de um Vergílio Ferreira (com Aparição, em 1959) tenham demarcado um novo tratamento na matéria discursiva do romance português, não há como negar que a geração daqueles artistas, a partir da década de 1940, foi decisiva para os rumos da ficção portuguesa e do qual boa parte dos escritores das décadas de 1970 e 1980 pode ser considerada devedora de suas criações.

Deste modo, gosto de pensar que a abertura do romance O ano da morte de Ricardo Reis (1984) pode muito bem ser entendida como uma espécie de retomada deste espírito viajante e crítico do homem português do século XX. Afinal, as barcas do antigo Império já não existem mais, por isso, é preciso navegar para dentro da terra, para dentro daquela paisagem do latifúndio e do próprio âmago humano, numa espécie de demanda por uma autognose portuguesa. Neste sentido, não há como não vislumbrar esta preocupação, logo no início no referido romance: “Aqui o mar acaba e a terra principia” (SARAMAGO, 2011, p. 9).

Antes dele, porém, é com Levantado do chão, que Saramago investe na interrogação sobre os caminhos da política portuguesa pós-1974. Não vou, aqui, contar o enredo do romance, até porque não pretendo roubar o prazer da leitura ao leitor. Mas não posso deixar também de mencionar que a saga da família Mau-Tempo, criação saramaguiana “para viver metonimicamente as aventuras dos camponeses alentejanos nesse atribulado e controvertido século XX” (SILVA, 1989, p. 236), efabula os caminhos trágicos pelos quais muitos portugueses sem sobrenomes nobres, esquecidos pelas malhas do poder numa paisagem longínqua, precisam confrontar e enfrentar.

Por isso, quando Teresa Cristina Cerdeira, na sua incontornável análise sobre o romance de Saramago, chama a atenção para uma espécie de projeto criador de uma “saga de portugueses”, mostrando como o escritor resgata, pelas malhas da ficção, aqueles que foram sumariamente esquecidos das linhas da história oficial, tem razão em encerrar a sua leitura com Levantado do chão. Segundo a pesquisadora brasileira, no referido romance, é perceptível a presença de três tempos distintos, cada um relacionado a uma parcela destes sujeitos alentejanos. O tempo do silêncio com Sara e Domingos Mau-Tempo; o tempo das perguntas com João Mau-Tempo e Faustina, António, Gracinda e Manuel Espada; e, por fim, o tempo das respostas possíveis, com o espírito da mudança revolucionária de Maria Adelaide Espada. Na sua explicação, ressalta:

Afinal o romancista, que não abdica do gozo da imaginação, cria um espaço ficcional onde não faltam as paixões, os dramas pessoais, homens e mulheres com seus sonhos e seus amores. Não são eles, certamente, intemporais ou atemporais. Estão sujeitos à tirania de um tempo que os historiciza e os compromete com a caminhada da humanidade. Mas essa estrutura de que falávamos não é outra senão a aventura de um tempo novo, em que os homens amadurecem as suas reflexões sobre o papel que desempenham no contexto social. É uma conquista lenta e, sem dúvida, dificultada pelo poder, que se sente ameaçado por qualquer tipo de questão que perturbe a ordem acreditada eterna. […]

Estamos, sem dúvida, diante de um texto de intenções ideológicas definidas, que não pretende perder a chance que o discurso poético lhe abre para veicular a sua óptica sobre o espaço da longa caminhada do homem em seu processo de aprendizagem, seja este homem o seu personagem ou o seu leitor. (SILVA, 1989, p. 235-237).

Longe, portanto, de ser mero desenho paródico a uma certa tendência neo-realista ou de tentar revivescer uma prática panfletária extemporânea, José Saramago desperta a necessidade do sujeito (ou o personagem ou o leitor que com este se depara e se inquieta) encontrar o seu processo de aprendizagem, formação e interrogação, seja sobre o mundo, seja sobre si próprio e seu papel social.

Sensível, poético e desassossegador este Levantado do chão, romance escrito há 35 anos, mas que, ainda hoje, mantém o frescor das reflexões que não podem ser abandonadas das pautas de discussões nas suas mais diversas esferas. O seu autor, além de exímio criador e contador de histórias, sempre se mostrou empenhado em exercer o papel de escritor e pensador do seu tempo. Na sua mais afiada forma de se definir, o próprio José Saramago não cansava de reiterar a necessidade de não se acomodar com as superficialidades e as aparências falaciosas: “Sou um escritor livre que se exprime tão livremente quanto a organização do mundo que temos lho permite” (SARAMAGO, 2009, p. 183).

Hoje, nestas minhas digressões pessoais, fico feliz com o saldo positivo das releituras das obras de José Saramago e das de alguns dos seus estudiosos, afinal, acredito que, no fundo, aquilo com o qual eu não simpatizava nada mais era do que uma inquietação que o seu texto me transmitia e que eu, sistematicamente, recusava a receber, talvez por incapacidade (ou soberba, quem sabe?) mesmo de leitor recém-graduado. Ainda bem que, como já ensinara Camões, “muda-se o ser, muda-se a confiança, / todo o mundo é composto de mudança” (CAMÕES, 1988, p. 102). O tempo é implacável e as transformações são inevitáveis, basta ter um pouco de humildade para reconhecer o inevitável. Mas, como já o disse outras vezes (e nunca é demais repetir), isto é apenas uma digressão minha, ou, como o próprio nome do site nos indica, uma livre opinião.

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Referências Bibliográficas

CAMÕES. Luís de. Poesia lírica. Seleção e introdução por Isabel Pascoal. Lisboa: Ulisséia, 1988.

REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1999.

SARAMAGO, José. Levantado do chão. 3ª. edição. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

__________. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

__________. O caderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. JOSÉ SARAMAGO – Entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Dom Quixote, 1989.

 

[1] Ainda que, em 1987, O essencial sobre José Saramago, de Maria Alzira Seixo, tivesse sido publicado, o texto de Teresa Cristina Cerdeira pode ser considerado o primeiro de envergadura acadêmica, já que se trata de uma Tese de Doutorado (defendida em 1987 e publicada em Portugal, em 1989), a abordar de forma alentada e expansiva a obra de José Saramago.

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