Minha irmã Maria Lucia me perguntou de onde eu tiro as ideias pra escrever essas crônicas
Eu respondi pra ela que a própria pergunta poderia virar um texto
Que tudo serve de inspiração, que tudo tem história
Essa percepção óbvia eu só descobri depois que li o livro e assisti o filme O cheiro do ralo
Meu marido é escritor, sempre foi. Mesmo quando fazia histórias em quadrinhos eu lia tudo sem olhar os desenhos. A força pra mim está no texto, sempre
No cinema, o que me interessa é a história.
Lembro da escola, primeira série. A professora falando e eu anotando tudo. Até hoje sou assim. Os pejorativos chamam isso de CDF. Eu chamo de uma pessoa que tem dificuldade de guardar informação.
Sinto a cabeça confusa, muitas ideias e pouco discernimento
Estou com dificuldades pra montar os blocos no cérebro
Se eu soubesse desenhar eu te explicava melhor mas trabalho com palavras então tenho que te explicar assim mesmo, literalmente
Meu cérebro é uma caixa grande (a Isabel Teixeira desenhou direitinho mas ela estava falando de teatro) com várias caixinhas menores. Quem tem Windows phone vai entender. É uma brincadeira com a posição e o tamanho de cada caixa dentro da caixona
Cada caixa tem uma etiqueta: marido (a caixa do meu marido tem várias gavetinhas porque ele é muitos na minha cabeça, tipo pai, namorado, homem, escritor, desenhista, amigo e parceiro); filho, gatos, casa (que inclui roupa, almoço, janta, louça, quarto, sala, cozinha, banheiro, área de serviço), família (do meu lado, mãe, pai, irmãos, sobrinhos, primos, tios e sobrinhos netos), a família do meu marido, os amigos, o meu trabalho (literatura, cinema, teatro e internet)
Tem outras caixas que eu gosto de cuidar também que são a caixa do cinema e da gula. Ao cinema eu gosto de ir sozinha, só no Cine Panelinha que eu gosto de companhia
Na gula, eu preciso de companhia e de uma testemunha, Adriana Simão, ela realmente entende quando eu falo que preciso comer uma coisa…carinha meiga sorrindo
Tem outras caixas com importância variável tipo viagens, festas, concursos, cursos, palestras. Essas são temporárias. Abro, uso, tiro fotos, registro em cadernos e depois descarto
O que sobrar, vira história
O que eu esquecer é porque não era importante
Mentira
Esqueci muita coisa que era importante
Minhas sobrinhas sempre me surpreendem com histórias que elas lembram que viveram comigo. Outro dia até meus sobrinhos, que falam bem menos, me contaram histórias que eu não sabia
Fico triste por não lembrar de tudo
Queria que todas as pessoas da minha família e meus amigos virassem escritores e contassem todas as histórias
Quero ouvir todas as histórias que essas pessoas tem pra contar
Tenho uma curiosidade doentia
Tudo eu quero saber
Se for algo muito íntimo muda o nome da cidade e dos personagens. Trocar o sexo deles também ajuda a enganar sobre quem você realmente está falando. O importante é contar o milagre. O nome do santo, nesse caso, não interessa
Sinto falta de não ter mais caixas dentro da cabeça
Mas o meu marido sempre fala que esquecer também é bom
Faz parte da vida saber esquecer
Eu costumo gritar com orgulho: eu perdoo mas eu não esqueço. Então, talvez eu não tenha perdoado de verdade. Esquecer é fácil. Perdoar é mais caro
Mas voltando a pergunta da minha irmã sobre de onde eu tiro as ideias
Eu tiro as ideias da vida mesmo. Fico de olho nos outros. Em casa, na rua, no metrô, no ônibus. As histórias acontecem na nossa frente o tempo todo. Faça um teste você. Olhe em volta. Espia a vida acontecendo. Coisas incríveis acontecem o tempo todo. O escritor olha, observa, anota e depois mistura tudo aquilo nas caixas da cabeça e transforma em história
É tipo fazer um bolo. Você pesquisa a receita (ou inventa, ou alguém compartilha com você), separa todos os ingredientes e utensílios e faz
Depois a gente come
Sozinho ou em grupo
O importante é não parar de comer e cagar, nunca
Então, Maria Lucia, escrever é isso: comer e cagar, todos os dias de preferência para manter o corpo e a mente saudáveis
Você já deve ter reparado que eu sou meio camaleônica, eu reajo muito de acordo com o lugar que estou. É óbvio que, às vezes, eu me confundo e me comporto num velório como se estivesse numa festa e o contrário também acontece
Só pra te dar um exemplo, ontem eu sentei no chão do metrô porque precisava escrever uma crônica, não essa, outra
Escrevi rápido porque você sabe que as pessoas não podem sentar no chão do metrô, erro e faço coisas que não são permitidas socialmente
Isso faz parte da vida do artista também. Fazer coisas consideradas exóticas, diferentes ou muito bizarras
Cada artista tem um tipo de caixa na cabeça. Não precisa ser artista pra entender isso. Pense na sua cabeça do lado de dentro: quantas caixas você guarda aí?
Meu marido sempre fala que escrever não tem fórmula
A gente escreve e pronto
Então, é tipo viver mesmo, sabe?
Cada um cada um
Confira os textos anteriores da autora: Coluna 1, Coluna 2, Coluna 3, Coluna 4, Coluna 5, Coluna 6, Coluna 7, Coluna 8, Coluna 9, Coluna 10, Coluna 11,Coluna 12, Coluna 13, Coluna 14, Coluna 15, Coluna 16.
Lindo texto, Lu. Inspirador!
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