Por ocasião da 12ª. edição da Feira do Livro da UFSCar, a palestra desta 4af, dia 06 de maio de 2015, ficou a cargo de José Miguel Wisnik, músico com formação clássica, compositor, ensaísta e professor de literatura brasileira da USP. Foi uma oportunidade única. Pianista de virtuosismo precoce (aos 17 anos apresentou o Concerto para piano e orquestra no 2, em Sol menor, de Saint-Sãens – para quem conhece o repertório do instrumento sabe que não se trata de uma peça simples ou de fácil execução) e professor apaixonado pela literatura, na ocasião, José Miguel Wisnik palestrou sobre “O prazer da palavra cantada”, recitando versos de poetas brasileiros e recuperando momentos singulares da música popular, numa performance cativante e sedutora.
Autor de livros paradigmáticos, tais como O coro dos contrários – A música em torno da Semana de 22 (Duas Cidades, 1977) e O som e o sentido: uma outra história das músicas (Companhia das Letras, 1989), Wisnik tornou-se nome presente nas bibliografias dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras e em Música. Confesso que sempre o tive como modelo. Na época da Graduação em Letras, nos anos de 1980, na UFRJ, o primeiro texto era referência imediata quando se falava do primeiro Modernismo no Brasil. Na década de 1990, já nos bancos da Escola de Música da UFRJ, a segunda obra era utilizada com frequência pela mestra Sonia Maria Vieira, na disciplina de “História da Música”. Lembro-me, com carinho, de suas aulas e de um dia em particular, quando ela entrou – sabendo que, na época, me sentia dividido entre os concertos e as apresentações e a lida do magistério em literatura – e me entregou um livro de capa azul, com um sorriso e a sua sábia sentença: “Leia este livro. O autor conseguiu achar um ponto de equilíbrio, espero que ajude a encontrar o seu”. E ajudou.
Apesar do tempo lendo, estudando e utilizando os seus textos, nunca tive a oportunidade de encontrar e falar pessoalmente com José Miguel Wisnik. Foi o primeiro encontro, marcado pela generosidade e atenção, peculiares de um intelectual fora dos padrões comuns. Não se trata de tautologia ou exageros. A breve conversa, interrompida para que ele pudesse autografar os livros, demonstrou bem a postura deste professor.
Uma das provas mais concretas destas minhas considerações pôde ser registrada na própria plateia. Numa 4af. à tarde, o Teatro Florestan Fernandes estava praticamente lotado de alunos das mais diversas áreas, professores, funcionários (que aproveitaram parte do seu intervalo para dar uma espiada na fala de Wisnik), além de pessoas da comunidade que compareceram para prestigiar o evento. Não há como descrever o prazer, o respeito e a admiração do público diante do turbilhão de informações que iam sendo transmitidas paulatina e ordenadamente, com versos e canções.
Na breve conversa que tivemos, José Miguel Wisnik falou, sobretudo, do seu trabalho em forma de partilha, e não de divisão, nas duas frentes: a música e a literatura.
JORGE VALENTIM – Uma boa tarde! Começo por agradecer a oportunidade de poder conversar consigo, um dos artistas mais sensíveis da sua geração. É um prazer muito grande estar diante de um intelectual e um ensaísta, que se tornou um ícone nas gerações de músicos e estudantes de letras nas décadas de 1980 e 1990, geração, aliás, da qual eu faço parte. Você é um artista multímodo, podemos dizer assim, na medida em que transita, com grande facilidade, por mais de uma forma de expressão artística, de modo que encontrar dados biográficos seus não constitui uma tarefa difícil, ainda mais em tempos com facilidades digitais. Mas, conhecer o artista por ele próprio é algo muito mais curioso, para não dizer, instigante. Por isso, inicio a nossa conversa com a seguinte provocação: como o José Miguel Wisinick se apresenta e se define para o seu público leitor e/ou espectador?
JOSÉ MIGUEL WISNIK – Bom (risos)… Esta é uma apresentação que tem uma história, porque eu tive uma formação musical com uma carreira específica na área, e, para além disto, também tenho uma carreira acadêmica no curso de Letras, que envolveu minhas idéias, teses e pesquisas. Havia gente que me conhecia como músico, por um lado, e, por outro, que me conhecia como ensaísta ou professor, enfim. Para eles, eu parecia como duas pessoas diferentes. Era como se eu estivesse dividido entre duas searas distintas. Eu acho que, com o tempo, isso acabou se parecendo com um túnel, como se eu fosse cavando por dois lados e, num determinado momento, esses dois túneis se encontraram e formaram um só. Acho, hoje, natural pensar que eu sou uma pessoa que trabalha com a palavra e a música. Ou seja, eu trabalho com sons e sentidos, digamos assim. Enfim, sobre isto, quando hoje me perguntam se eu não me divido realizando duas coisas ao mesmo tempo, eu sei e respondo, claramente, que eu me sentia dividido quando eu não fazia assumidamente essas duas coisas. Aí sim, eu me sentia divido. Na verdade, atualmente, fazendo as duas coisas que, na verdade, acabam se cruzando e se tornando uma coisa só, eu não me sinto dividido.
JV – Aliás, isto era um aspecto que eu já ia perguntar. Parece-me, então, que não se trata de um caso de divisão, mas de partilha, certo?
JMW – Exatamente, porque eu penso que são campos que se comunicam mesmo e que não me provocam mais tensão. Não só o fato de lidar com a literatura ou com a reflexão sobre as linguagens, na área das Humanidades, ou lidar especificamente com temas das áreas musicais, mas também, e mais especificamente, por dar aulas e, ao mesmo tempo, fazer música e me apresentar como músico. Com o tempo eu percebi que, quando eu não fazia música expressamente, quando eu estou dando uma aula, inevitavelmente eu também estou fazendo música. Há um ritmo na fala, certo? Eu acredito que a minha formação musical está muito ligada à maneira como eu falo, porque o modo de dividir as frases, de acentuar, mesmo sintaticamente, saber onde uma frase chega e como ela se conclui, etc. Eu acho que a formação musical acaba se combinando com a fala, com o discurso, com a linguagem verbal, então, por isso mesmo, eu as sinto como coisas consolidadas, como atividades que se encontram.
JV – Eu acredito que isto fica muito nítido, por exemplo, no seu livro O som e o sentido. Percebe-se, nitidamente ali, o discurso de um músico, de alguém preocupado em refletir sobre questões estéticas e musicais, mas também alguém interessado em refletir sobre os sentidos dos sons e das palavras, em transmitir um determinado conteúdo com clareza e se fazer compreendido entre os seus leitores. Há ali, portanto, a meu ver, um valor didático e pedagógico muito forte, ou seja, seria este, talvez, o ponto de convergência entre os dois lados a que você se refere?
JMW – Puxa, isso é muito bem observado! Eu sou professor e este é o meu metier mais consolidado, ou seja, é a coisa que eu sempre fiz a vida inteira, e, desde que comecei, eu me sinto inteiramente identificado com dar aulas, explicar, expor idéias, pensar inclusive alto com o público com o qual eu estou falando. Então, eu acho que o pedagógico é o ponto de cruzamento entre estes meus dois lados.
JV – Ou seja, além de ser um músico sensibilizado com o poder da palavra, o José Miguel Wisnik também é um ensaísta movido por uma necessidade inquietante de reflexões e de fazer o seu público (seja o leitor, o ouvinte ou o discente) pensar. Na minha opinião, um dos exemplos mais fortes desta proposta encontra-se no seu O som e o sentido. Diferente dos manuais de história da música, nesta obra você parte de uma concepção diferente, baseado na mudança dos sistemas musicais, do modal ao tonal, e deste ao serial. Há neste gesto uma atitude intelectual muito forte. Daí a minha interrogação, em que medida este lado intelectual interfere e ajuda nos dois outros?
JMW – E o que você chama de lado intelectual? (risos)
JV – Bom, como você mesmo pontuou, você tem um trabalho como ensaísta e é professor de literatura brasileira na USP, ou seja, pertence a um universo da academia que, nem sempre, convive direta e necessariamente com o seu público, enquanto intérprete e compositor, certo?
JMW – Está certo, você tem razão, porque não são coisas desligadas. Ultimamente, para falar a verdade, eu tenho feito muito um gênero que, na falta de um nome melhor, designamos de “aula-show”. Em Portugal, eles nem querem ouvir falar deste nome (risos). Mas, trata-se de um espetáculo onde as canções são apresentadas como num show, mas os comentários tecidos entre elas segue um roteiro, motivando uma reflexão sobre o material utilizado. Eu fiz isto muitas vezes, e faço ainda hoje com o Arthur Nestrovsky, que é músico e violonista. Esse gênero foi uma solução justamente para situações assim, porque ali há o desenvolvimento de um pensamento ensaístico-literário, digamos assim, juntamente com o gesto pedagógico de transmissão de conhecimento. A partir dele, com o formato que conseguimos fixar, acredito que resultou o fim do meu dilema, daquela série de perguntas sobre o que faço, se eu me divido, se nesta divisão eu me tensiono. Houve época, como disse, que foram um problema, mas hoje acredito que tudo isto está resolvido e o público reage muito favoravelmente.
[Interrupção]
JV – Bom, quero agradecer o pouco tempo de atenção e finalizar dizendo que uma grande amiga e mestra me pediu para te transmitir um abraço: Maria Lúcia Dal Farra.
JMW – Ah, mas aí você deixou para o final a palavra mágica que abre todas as portas da imaginação e do encantamento! Obrigado pela acolhida e pela conversa.
Breve, concisa, pontual e elegante. A conversa com José Miguel Wisnik foi extremamente proveitosa. De repente, em outro local, mais assuntos e temas teriam surgido. Mas, o que fica deste intelectual é a sua singularidade como ser humano e como artista. Longe dos preciosismos e dos pedantismos acadêmicos, José Miguel Wisnik proporcionou uma tarde inesquecível. Mais, ainda, quando, no final da palestra, surpreendendo o seu público, despediu-se, avisando que precisava ver o jogo entre Barcelona e Bayern de Munique, porque se tratava de material de trabalho. Alguns desavisados riram. No entanto, além de ensaísta e músico, Wisnik é um refinado analista de futebol. Basta conferir Veneno remédio – O futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008). Pode-se dizer que o convidado desta conversa não poderia deixar melhor impressão, afinal, trata-se de alguém com uma livre opinião e cheio de idéias para debater.
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