
Fabián Severo. Foto: Filipe Baldin.
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A istoria se repitió por muintos mes.
Mi maestra iscrevía mas mi madre no intendía.
Mi maestra iscrevía mas mi madre no intendía.
Intonses serto día mi madre intendió i dise:
Meu fío, tu terás que deiyá la iscuela
i yo deiyé.
“Trinticuatro”, Noite nu Norte.
Fabián Severo nasceu em Artigas, no Uruguay, cidade que faz fronteira com o Brasil, em 1981. Autor de Noite nu Norte (2010), Viento de Nadie (2013) e NósOtros (2014), o escritor da fronteira tem uma particularidade: escreve seus poemas em portunhol.
Nascido num espaço geográfico em que o portunhol é amplamente utilizado, Fabián aprendeu suas primeiras palavras neste idioma, começou a construir sua história neste idioma tratado com desdém por muitos.

Capa do livro Noite nu Norte. Img: divulgação.
Severo, quando menino, parece ter sido muito obediente: “Fabi andá faser los deber, yo fasía./ Fabi traseme meio litro de leite, yo trasía./ Desí pra doña Cora que amañá le pago, yo disía./ Deya iso guríi yo deiyava.”. Mas, ao que parece, foi sua desobediência, sua aversão às normas da linguagem que deram vida à sua escritra particular e cativante. “Intonses serto día mi madre intendió i dise:/ Meu fío, tu terás que deiyá la iscuela/ i yo deiyé”: este ato de “deiyá la iscuela”, em seu poema “Trinticuatro”, parece mesmo coincidir com uma emancipação – ao menos da linguagem – do escritor. Suas poesias abordam as temáticas fronteiriças, com uma linguagem também fronteiriça, com poemas que estão sempre na fronteira entre a ficção e a memória, na fronteira da língua materna e da construção linguística.
Foi para tentar desvendar as peripécias desse autor que o Livre Opinião – Ideias em Debate bateu um papo com ele, enquanto participava do 16º Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol (CBPE), realizado entre 28 e 31 de julho na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde realizou a mesa de abertura do evento juntamente com Neide T. Maia Gonzáles, da Universidade de São Paulo (USP) e de Ilan Stavans, do Amherst College, nos Estados Unidos. Confira abaixo a entrevista concedida ao LOID:
Livre Opinião – Ideias em Debate: Como falante do portunhol, nascido nesse idioma, por assim dizer, é natural comunicar-se através dele. Mas, quando você decidiu que o portunhol faria parte da estética da sua poesia?
Fabián Severo: Isso nasceu de uma necessidade física, pessoal e emocional. Quando tive que recriar as minhas lembranças, o meu passado na fronteira, quando comecei a sentir saudade da fronteira, as lembranças vinham na minha cabeça misturadas em português e espanhol. E eu queria escrever isso. Escrever como uma possibilidade de existir e de poder aliviar um pouco estes “sons” na minha cabeça. Mas, na hora de passar para a escrita, na hora de escrever, eu tinha um problema: ou escrevia em espanhol, ou escrevia em português. Qualquer das duas possibilidades não se aproximava daqueles “sons” que eu ouvia. Então tive que experimentar e fui tentando. O resultado alguns dizem que é portunhol, outros que não. Eu não sei bem – às vezes até digo que é um espanhol da fronteira. E essa é uma escrita que vai mudando de livro para livro – por exemplo, Noite nu Norte, Vento de Nadie – e vai mudando também conforme as etapas de minha vida, meu estado emocional.
LOID: Qual a importância dessa linguagem, de estabelecer-se e criar nela? É uma maneira de marcar-se no espaço, como um ser fronteiriço?
Fabian: É uma necessidade para poder existir. Eu, para poder existir, preciso das palavras. As minhas palavras, a minha língua materna, são essa mistura. Para que eu possa me pensar, para que eu possa lembrar-me de mim mesmo e recriar a minha vida e pensar em minha história, eu preciso dela. A escrita, a arte – ou a arte de escrever poemas –, está muito ligada ao emocional, às memórias, portanto os temas que escrevo são temas que passam através de mim. Então, eu preciso dessa língua porque eu sou da fronteira, preciso dela para falar de tudo isso.
LOID: O que você pretende provocar no leitor com seus poemas? Mais: o que você pretende causar em seus leitores com essa linguagem?
Fabián: Bem, não é meu objetivo fazer uma defesa apaixonada do portunhol, nem reivindicar o portunhol e nem ter isso como uma postura estética. Não é esse meu objetivo. Penso que o portunhol não precisa que os artistas o defendam, na verdade é o contrário. Eu preciso do portunhol para poder compor e dizer o que eu quero dizer.
Já o que eu pretendo causar no leitor é uma coisa muito relativa: uma coisa acontece na etapa em que estou escrevendo, que costumo chamar de vulcânica, onde as ideias vão surgindo. Outra coisa é a etapa em que a escrita já tem uma forma e eu começo a pensar no livro, num produto artístico que vai sair para o leitor. Gostaria que meus poemas pudessem servir para me comunicar com o leitor, que isso provoque algo que seja uma emoção, uma tristeza, um sorriso, mas não indiferença. Porque a magia da literatura é combinar as palavras no papel e, como resultado dessa combinação, sentirmos algo que às vezes nem sabemos bem o que é. A magia é a possibilidade de um leitor aqui de São Paulo ler o que escreveu um cara lá de Artigas, que mora a dois mil quilômetros e isso produzir algo nele. E isso quer dizer que podemos nos comunicar através da literatura.
LOID: Sua cidade natal (Artigas) e o portunhol permeiam seu livro de poemas Noite Nu Norte. Aliás, algo interessante é que o próprio nome da cidade muda de grafia em diferentes poemas como em “Cuatru”, “Sete”, “Oito”, onde aparece como “Archigas”. Onde fica, neste livro, em especial, a fronteira que separa – ou une – seu trabalho de construção da linguagem e as reminiscências da sua terra, da sua vida em Artigas e de falante do portunhol?
Fabián: Eu escrevo sobre temas fronteiriços e isso pede uma linguagem fronteiriça. Ademais, faço ficção, não sigo nenhuma norma – até poderia dizer que essa seria uma regra: não seguir nenhuma regra. Vou fazendo à medida que coisas vão surgindo. É por isso que Artigas pode ser “Archigas”, ou pode ser “Artiga”. Isso vai surgindo porque elaboro segundo o contexto, o objetivo do poema e, depois, até pensando na construção da obra. Um trabalho de laboratório, de cuidado do verso, de brincar com a musicalidade, mas isso já seria uma outra etapa. Acontece que não sinto nenhum tipo de pressão na hora de escrever porque acho que o escritor é um cara que brinca com as palavras, que tenta criar através da palavra. Então posso fazer o que me parece conveniente através do verso, depois é que saberei se isso pode ou não comunicar algo ao leitor. Porém, esta é uma etapa em que não tenho controle.
LOID: Durante sua fala, você disse: “Alguien me disse que la Literatura es un lugar onde puedo caminhar falando con las palabra que me cantó mi madre, sem sentir miedo de que algún profesor me señale con el dedo, gritando: ilegal”. Fazendo sua poesia, sua arte, você se sente ilegal?
Fabián: Acho que a literatura foi o melhor lugar que encontrei para existir, porque a literatura não me pede explicações sobre o porquê faço o que faço. Se bem que, em minha fala de hoje, na abertura do congresso, fiz alusão aos “fiscais da língua” que querem entrar na literatura – mas acho que isso tem uma explicação, que seria o intento de ensinar línguas através da literatura, ou mesmo transformá-la em um material somente para o ensino –, mas nela eu me sinto livre. Nela ninguém pode me dizer que algo é ou não é; isso é ou isso não é portunhol; isso é legal ou isso é ilegal.
Eu não me sinto ilegal escrevendo porque a literatura não tem leis, então não há como romper leis se elas não existem. Qualquer escritor pode escrever o que quiser, desde que isso responda aos ideais que ele tenha, seus objetivos com a forma e a estética que busca. Fiz uma alusão [na fala de abertura] dizendo que nessa trincheira nenhum professor poderá entrar e me marcar como um ilegal. Isso talvez seja feito pelo que chamamos de línguas de prestígio, mas não pela literatura.
LOID: Outra parte da sua fala que nos chamou a atenção foi esta: “Yo nací na cidade de Artigas. Mi familia, mis vecino y mis amigo, falan misturando las palabra del portugués y el español. El portuñol es mi língua materna. Cuando yo istava na barriga de mi madre, ya iscutaba el mundo intreverado. Despós, na época que hice la iscuela, me quiseron hacer creer que los que hablábamos misturado éramos pobre, sucios, burros. Yo no sé si el resto del mundo pode intender qué se siente cuando alguien dice que tus palabra no sirven, é como si nos disseram que nosso corazón nao presta y que para tener vida, temo que se botar uno nuevo“. A despeito da belíssima afirmação, como foi a relação do ensino na sua escola com esta língua falada na fronteira onde você vivia? E como é – se você está ciente disso – esta relação nos dias de hoje?
Fabián: Por escrever nessa mistura, obviamente, estou em contato com o que acontece com a língua, tanto no nível formal como no informal, num sistema educativo ou nas politicas linguísticas. Não gosto muito de me meter neste tema, mas o que nós não podemos negar é que não só no Uruguai, mas também no Brasil, existem políticas linguísticas que querem impor uma língua de mais prestígio sobre outra que tem menos prestígio, criando um discurso fictício de que existe algo como falar o português padrão, ou o espanhol neutro. Como se existisse uma cidade no mundo onde existissem falantes do espanhol neutro, ou de um português único!
Acompanho este tema e sei o que acontece, até já senti na pele o que é crescer e falar numa língua que vai contra aquelas postuladas por políticas linguísticas. Porém, não gosto de me intrometer muito nesta temática até porque não creio que eu tenha muita propriedade para falar disso, mas também porque não quero que a parte acadêmica e técnica comece a interferir em minha criatividade. Isso já aconteceu, acontece e continuará acontecendo: alguns artistas se preocupam apenas com a forma, com a técnica, e se esquecem do conteúdo, do que eles buscam trazer em suas poesias.
Leia na íntegra o discurso de Fabián Severo na mesa de abertura do 16º CBPE.
Entrevista: Vinicius de Andrade. Gravação: Filipe Baldin.
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