Não basta indicar imagens. O simples fato de eu concordar com sua criação faria sua experiência ficar mais forte e a chance de voltarmos à mesma cena seria enorme. Eu cresço com essa família, percebi com eles que a repetição garante continuidade.
[ANDRÉA DEL FUEGO. As miniaturas.]
Já é bem conhecida no meio literário a expressão metafórica das gavetas abertas. Sempre depois de um período de imposição censorial, em que o pensamento intelectual e as expressões artísticas são colocados sob um forte crivo controlador e repressor, a explosão da liberdade criadora aparece vinculada a uma imagem que expande a ideia de contra censura. No mundo da escrita, a veia de criação circula exatamente a partir da liberdade que a abertura das gavetas, espaço outrora dedicado a guardar a sete chaves aquilo que não podia vir a público, sugere tanto aos criadores quanto aos receptores das obras.
A título de exemplo, basta lembrar o instigante livro de ensaio de Tânia Pellegrini que tem como título Gavetas Vazias, cujo foco de estudo incide exatamente sobre as relações entre ficção e política no contexto da ditadura militar brasileira, apontando assim para o movimento de esvaziamento e publicação daquilo que precisava ser mantido, por ordens várias, na dimensão do silêncio.
Toda esta digressão inicial dá-se em virtude de, em junho passado, de 25 a 27 para ser mais preciso, ter ocorrido na cidade de São Carlos o 1º Festival Gaveta Livre, sob a curadoria de Vinicius Andrade, Jorge Ialanji Filholini (organizadores e coordenadores do site “Livre Opinião – Idéias em Debate”) e Fernando Cruz (diretor fundador do “Espaço Gaveta – Centro Experimental de Artes”). Com eventos variados, realizados no SESC São Carlos e na sede do “Espaço Gaveta”, o evento foi um momento único e singular para debater, dialogar e trocar ideias. No que este difere, por exemplo, das já conhecidas feiras de livro? Primeiramente, a total despreocupação com a questão comercial. Daí, a liberdade, expressão contida no título do festival. Se as gavetas estão livres, isto quer dizer que não há uma necessidade imperiosa de que elas só devam ser preenchidas por notas e dinheiro. Isto não quer dizer, no entanto, que qualquer empresário ou mecenas que queira investir em cultura não possa ou não deva dar a sua contribuição. Muito pelo contrário, todo o investimento é bem vindo. No entanto, as pessoas ali reunidas não foram preocupadas em comprar ou vender, mas compareceram querendo partilhar, aprender, dividir e ensinar algo. E isto, tomando de empréstimo um dito popular muito conhecido numa certa rede de comerciais na mídia, não tem preço.
Mas as gavetas também estão e são livres porque as ideias circulam sem uma hierarquização impositiva. Neste sentido, outro aspecto diferenciador deste festival reside na distribuição bem sucedida das seções. Sem dúvida, esta foi um indicativo desta preocupação dos organizadores: nomes desconhecidos de jovens escritores e recém iniciados no metier foram somados a nomes já extremamente reconhecidos da literatura brasileira e galardoados, inclusive, com prêmios de projeção nacional e internacional. De um lado, portanto, o participante poderia travar contato com Matheus Torres, Le Ticia Conde ou Gustavo Primo, ao mesmo tempo que conversava diretamente com Marcelino Freire, Andréa Del Fuego e Lourenço Mutarelli, dentre outros convidados.
Este, aliás, foi um show à parte. Homenageado do Festival, Lourenço Mutarelli foi de uma generosidade incomparável. Conversou, perguntou, respondeu, autografou, pediu opiniões e informações, riu e, é claro, bebeu. A abertura no SESC / São Carlos, instituição que apoiou o evento, foi um daqueles momentos memoráveis do evento. Conduzida pela mão sempre generosa e sensível de Marcelino Freire, a conversa destacou a trajetória do escritor, os percalços, a sua iniciação, a sua obra, o sucesso e o reconhecimento do público, as adaptações para o cinema, enfim, toda uma gama de experiências muito bem direcionadas ao público presente.
Por isso, na minha perspectiva, fica um pouco difícil de entender como uma Secretaria Municipal de Cultura, ou mesmo a de Educação, simplesmente tenha se ausentado em colaborar e investir num evento desta magnitude, que só traria bons resultados para a cidade. Investimentos mais expressivos na divulgação e na realização do Festival Gaveta Livre poderiam trazer lucros na rede hoteleira (para hospedagens de participantes de fora), no turismo da região (estimulando a visita a pontos de São Carlos), sem falar na visibilidade que daria à cidade, ainda mais em tempos de cortes drásticos e de secura no empenho à propagação da cultura e afins. E, é bom que se frise, que não estamos falando de somas gigantescas, mas de uma cooperação mínima, que, no fundo, seria suficiente para que o Festival tivesse uma variedade maior de atrações, mesas-redondas e bate-papos. Aliás, já aqui, deixo a minha sugestão para a próxima edição, levando em consideração a deliciosa e sensível expressão de Lourenço Mutarelli (afirma ele que bebida não é bebida, mas tratamento fitoterápico…), que as já conhecidas seções de café literário sejam chamadas, no Festival Gaveta Livre, de “Botequins Literários”. Seria uma ótima maneira de aliar duas coisas absolutamente sedutoras, não?
Dentre os convidados, além da abertura e das mesas com os jovens escritores, os saraus, os bate-papos e as rodas de conversa com Marcelino Freire, Lourenço Mutarelli e Andréa Del Fuego foram momentos para guardar na memória. Tive o prazer de conduzir a da autora de Os Malaquias. Naquela apresentação, uma das coisas que mais me deixou intrigado foi como apresentar uma mulher, que, no seu ofício de escritora, decidiu adotar, deliberadamente, um nome que tem o fogo? Ou, de repente, que tem o fogo dentro de sua identidade assumida? Tarefa difícil, com certeza. Poderia adotar o método mais fácil e simples: o Wikipédia, via Google:
Trabalhava em publicidade quando, depois de mostrar contos eróticos a um amigo jornalista, recebeu o convite para criar uma seção de respostas a dúvidas sobre sexo. Criou então o seu pseudônimo, uma referência a Luz del Fuego2 3 .
É autora dos livros de contos Minto enquanto posso (2004), Nego tudo (2005) e Engano seu (2007). Participa das antologias Os cem menores contos brasileiros do século e 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira, entre outras. Publicou também Blade Runner, em 2007, pela editora Mojo Books.
Escreveu em 2008 o romance juvenil Sociedade da Caveira de Cristal.
Ao lado de outras autoras brasileiras contemporâneas, como Índigo, Cecília Giannetti e Carol Bensimon, teve um conto publicado na coletânea Histórias femininas (editora Scipione,2011)4 .
Seu primeiro romance, Os Malaquias, foi lançado em 2010 e conta a história de três irmãos que ficam órfãos quando seus pais são atingidos por um raio5 . A obra valeu à autora o Prémio José Saramago de 20116 .
Como colunista do programa Entrelinhas, da TV Cultura, produziu matérias sobre autores como Murilo Rubião, Roberto Bolaño, Ana Akhmatova, Julio Cortázar e Enrique Vila-Matas.
Mas, nada em Andréa Del Fuego é fácil e simples. Muito menos os seus textos, as suas tramas e as suas personagens. A começar pelo seu nome. Longe do comum “Andreia”, ela opta pelo surpreendente “Andréa”. Ou seja, trata-se de “André”, mesmo, reafirmado no feminino: “André + a”! A partir daí, o leitor fica livre para entrar nas viagens ficcionais criadas pelas mãos habilidosas dessa escritora generosa, robusta e intensa.
Vencedora do Prémio José Saramago, em 2011, pelo seu romance de estreia no gênero (do ano anterior), Os Malaquias, Andréa faz parte de um grupo seleto e reconhecido por esta distinção: José Luis Peixoto, Adriana Lisboa, Gonçalo M. Tavares, João Tordo e Ondjaki. Por isso, ainda que o Google seja a ferramenta digital mais rápida e imediata, é impossível não ceder a tentação de citar um trecho do seu romance Os Malaquias:
Todos se recolheram, a noite ia grossa, o vento afrouxava as janelas. As telhas vibravam, num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam em um quarto. Nico, Júlia e Antônio em outro, na mesma cama, aninhados em forma de embrião. Um gato esticou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, a casa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido até alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias. O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, pai e mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo. Nas crianças, nos três, o coração fazia a diástole, a via expressa estava aberta. O vaso dilatado não perturbou o curso da eletricidade e o raio seguiu pelo funil da aorta. Sem afetar o órgão, os três tiveram queimaduras ínfimas, imperceptíveis. Nico acordou e não saiu da posição, tenso, esperou o dia. A chuva não impediu que a noite clareasse, o galo ficou mudo. No quarto dos pais o sol entrou pelas telhas destruídas, o casal estava enrijecido sobre a cama, mas ninguém diria que uma faísca de fogo os havia cozido por dentro. O colchão e a borda das telhas ficaram enegrecidos, Nico foi até lá e se deu conta do embate entre luz e carne. Antônio abriu os olhos, em choque. Júlia estava alerta, mas não se mexia, não levantou a pálpebra, Nico a deu por morta. Ele puxou Antônio pela mão, atravessaram a sala, seguiram pela trilha que os deixou na porteira. Os dois ficaram sentados debaixo de um arbusto. Antônio cutucou o braço de Nico, a perturbação era fome. Nico voltou, a provisão mais acessível foi uma rapadura, que ele enfiou no bolso molhado. Ouviu barulho no quarto, era Júlia assustada. Mal desceu da cama e Nico a alcançou, pegou-a no colo, as pernas compridas batiam no joelho dele. Antônio roeu a rapadura, os outros se recolheram um com outro. Vacas se ergueram no fim da estrada, atrás delas um adolescente segurando um galho, água gelada pingava do chapéu, estiou. Os irmãos tremiam, lábio roxo, pés frios.
— Nico!
Timóteo era empregado de Geraldo Passos, dono da Fazenda Rio Claro. Timóteo foi até a casa dos Malaquias, entrou e voltou correndo. Disse nada, montou os três no cavalo sem arreio que vinha junto à boiada e continuou o trajeto. Assim que Geraldo viu os três em escadinha, mandou a velha empregada trazer café.
— Timóteo, amanhã você leva os pequenos pro lar da irmã francesa, lá na cidade. O maior fica comigo.
Dormiram os três juntos no tapete, em espiral estreita, ao lado da cama de Timóteo. Antes de saírem do quarto, Nico botou o resto da rapadura no bolso da irmã.
— Não chora, vou buscar vocês.
A pequena enxugou o rosto com a barra do vestido e a rapadura caiu. Antônio a pegou do chão e guardou no bolso dele, censurando a irmã. Timóteo levou Antônio e Júlia a cavalo. Seis horas de viagem até a pequena cidade.
— De onde são? — veio a irmã Marie.
— Os pais foram esturricados, caiu trovão na casa. O mais velho ficou na Fazenda, seu Geraldo pegou o menino pra ele.
Marie levou os dois para um pátio, esperariam ali até que se ajeitas se uma cama em um dos quartos (DEL FUEGO, 2010, 19-22).
Sem roubar o prazer da leitura, é preciso já esclarecer que todo este trecho constitui o capítulo 2 do romance, onde se narra um acontecimento crucial na vida dos 3 irmãos protagonistas de Os Malaquias: a morte dos pais, fulminados por um raio, e a sobrevivência dos filhos, salvos por um fenômeno orgânico. Somando os eventos sobrenaturais com possíveis explicações fisiológicas, o narrador de Andréa Del Fuego é marcado por um profundo censo de concisão e precisão. Por aqui, percebe-se já uma forma de escrita muito enxuta, precisa mesmo, sem verborragias ou trejeitos, tão comuns em escritos de estréia. Sim, o que mais espanta é acabar de ler O Malaquias e, mesmo sabendo que o referido título não constitui um produto de uma escritora iniciante, descobrir que se trata do seu primeiro romance, de seu primeiro texto de ficção longa.
Criadora muito madura, desde a sua investida no campo da ficção romanesca, a sua verve para o inexplicável e para o fantástico apontam para uma Andréa Del Fuego leitora de ficcionistas como Murilo Rubião e J.J. Veiga, e a sua ambientação numa paisagem rural, regionalista até, não deixa de estabelecer um riquíssimo diálogo intertextual com Guimarães Rosa e Autran Dourado, por exemplo. [Confira a entrevista que o Livre Opinião realizou com a escritora Andrea del Fuego].
Outro aspecto sedutor no seu projeto de escrita é o minimalismo. Aqui, ela encontra a sua zona de conforto e, ao mesmo tempo, de confronto, porque se é possível perceber um desenvolvimento espontâneo na tessitura da trama, que se compraz num enxugamento, também é preciso perceber e elogiar a maneira complexa com que vai conseguindo costurar cada pedaço deste puzzle narrativo, não deixando que o fio se perca, dilatando a tensão no desencadeamento e na sucessão dos eventos da trama. Vale lembrar, a propósito deste ponto, que o seu segundo romance, As miniaturas (2013), radicaliza este modus operandi de conduzir a voz narrante, a ponto de pulverizar o monopólio centralizador de um foco narrativo único, com personagens que vão intercalando as suas perspectivas ao longo de uma trama, gradativamente composta aos pedaços e de maneira acentuadamente heterogênea.
Por mais que se diga, portanto, que o regionalismo, o realismo maravilhoso e o fantástico já são zonas saturadas, Andréa Del Fuego vai na contramão deste discurso, recuperando, com um fôlego criador singular, formas de narrar o local, de descrever as paisagens e de costurar seus protagonistas com os espaços por onde se põem a viajar. Mais do que um romance regional ou de uma obra com laivos do realismo maravilhoso e do fantástico (que também é, diga-se de passagem), Os Malaquias constituem também um livro de viagens, de percursos interrompidos, de encontros suspensos e de desencontros sucessivos. As trajetórias de Nico, Timóteo e Júlia bem podem representar as ânsias e as contrariedades de tantos outros seres humanos que lutam, com todas as forças, para manter a lucidez, a consciência e o senso de ética. Ao contrário, portanto, do que afirma o narrador de As miniaturas, a continuidade no projeto criador da autora incide exatamente sobre a busca incessante de novas formas de estabelecer, expressar e encontrar o seu universo efabular.
Em nada, Andréa Del Fuego parece ser uma escritora simples ou ingênua. Muito pelo contrário. Como seu próprio nome parece indicar, é uma autora que encontra na palavra a força ígnea de construção e criação. Na mesa-redonda no Festival Gaveta Livre, anunciou que já prepara uma nova obra ficcional de fôlego. Esperamos que, na próxima edição, tanto o romance como a autora façam parte da programação.
Longe de querer fazer propaganda alheia ou criticar inadvertidamente quem quer que seja, espero sinceramente que os responsáveis pelas áreas de Cultura, Educação e Turismo desta cidade olhem com mais carinho e mais interesse iniciativas como a do “Festival Gaveta Livre”, que levam a reflexão, o prazer, a clareza e a oportunidade de diálogo para todas as pessoas da região, de maneira generosa, séria e competente. Afinal, pode-se esperar um encontro mais motivador do que este, que aponta para um movimento para fora, em pleno exercício de liberdade? Acredito que não. Mas, como gosto sempre de terminar, isto é apenas uma digressão minha, ou, melhor dizendo, uma livre opinião.
Referências Bibliográficas:
DEL FUEGO, Andréa. As miniaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
_________. Os Malaquias. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2010.
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