Coluna 36: ‘Vai dar no jornal’, por Lucimar Mutarelli

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– O policial matou o morador de rua na porta da igreja

Estava no trem e uma pausa na playlist me deixou ouvir somente essa frase

Instigada pelo Tiezzi a pensar na premissa de um filme para a próxima aula, tirei o som

Continuei com o fone no ouvido para não despertar suspeitas de que estava de olho na conversa de um grupo de quatro mulheres sentadas a minha frente

– Coitado…foi só defender a menina

Paro de ler e pego meu caderno. Preciso anotar isso e tem que ser agora

Fico chocada com a minha frieza diante da morte. Na hora não me toquei que um ser humano tinha morrido. Só pensava no argumento do filme

Será que a ficção nos deixa assim tão insensíveis?

Antes dessa cena começar, ela tinha falado alguma coisa estranha mas eu achei que estavam comentando um filme. Não parecia uma história de verdade, de jeito nenhum

Então eu pensei que falavam de um filme mas era a vida real sendo contada ali naquele momento

– Ficou metade do corpo pra dentro e metade pra fora da igreja

Era uma cena pronta. Tinha até o fim do filme

– Vai passar no jornal

– Com certeza

E eu fiquei sabendo assim, a história incompleta

Daria um bom filme para passar nos cinemas bacanas da Paulista

Essa mulher contando me deu a ideia

Conto pro Rodrigo e ele compra, faz um filme de baixo orçamento

A mulher não vai assistir porque ela trabalha o dia inteiro e a noite vai pra igreja

Ela chega em casa e quer dividir com a filha mais velha a tragédia que viu acontecer no Centro. A filha não tira o som do aparelho

– Eu sei, mãe. Tá todo mundo falando disso no face

A mãe sai. Queria achar um jeito de se reaproximar da filha. Eram tão unidas quando ela era pequena. Levava no cinema, no teatro, sorvete na praia. Faziam tantas coisas juntas

– Agora tá assim. O dia inteiro nesse computador e no celular. Nem fala mais com a gente

– Fica quieta que vai começar o jornal

– Eu não quero ver. Que tristeza isso, meu Deus

– Você não vai pra igreja hoje?

– Vou daqui a pouco. Vou jantar primeiro

Quando o filme estrear, a filha da mulher que me deu a ideia pro filme vai ver porque gosta de filmes que retratam a realidade brasileira

Ela não vai comentar porque os pais não estudaram

– São muito ignorantes e só vivem chamando a gente pra ir pra igreja

– Aquele pastor só quer dinheiro. Não vejo a hora de trabalhar pra ter o meu canto

– Minha mãe tinha que ver esse filme. É essa a realidade do povo brasileiro e ninguém quer ver. Olha, tá aí na nossa cara. Falou tudo. Esse filme me representa

– Eu não gosto que a Paulinha veja esses filmes violentos. É cada coisa feia. Não sei por que não fazem uns filmes bonitos pra gente ver com os filhos na igreja

A mãe não sabe que foi por causa dela que escrevi o roteiro

No trem, a mesma mãe fica irritada com uma mulher que passa com a filhinha no colo pedindo dinheiro

– É nova. Podia estar trabalhando

Uma das amigas abre a bolsa e entrega umas moedas pra mulher que pediu

– Não dá, Joana. Não pode. É por isso que elas não param de pedir e não quer saber de arrumar emprego

– Ah, eu tenho dó. Da criança. Vai que morre de fome. Quando eu tenho, eu dou mesmo. Deus tá vendo

Não é ficção

É verdade

Aconteceu diante dos meus olhos

Não me comoveu

Estava lendo e ouvindo música mas se estivesse passando o filme no cinema, eu choraria. Com certeza

O que me agrada é a mentira

É a ilusão de que aquilo aconteceu e segue acontecendo

Não vejo a hora de ver o filme no cinema porque jornal não assisto mais

É muito violento

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