‘Dois – uma jornada pelo abismo teatral’, por Marcelo Flecha

Fui espectador da primeira montagem profissional do texto “Dois”, terceiro texto da minha dramaturgia reunida publicada em 2011, pelo Programa BNB de Cultura, com o apoio do SESC–MA. O desafio ficou a cargo da queridíssima e parceira Cia. A Máscara de Teatro, de Mossoró, por consequência, o afeto me impede de tecer qual seja a crítica digna de confiança, pois minhas palavras seriam suspeitíssimas, mas não vou me privar de aprofundar o meu olhar sobre as ofertas que a montagem proporciona para o espectador, esse catatônico das plateias, como prega o próprio texto.

A experiência do autor teatral como espectador da própria obra é algo diferente de tudo o que um artista possa experimentar; principalmente no meu caso, onde a intenção de montagem jamais permeou meus pensamentos quando da escrita dos cinco textos que fazem minha dramaturgia. Como a dramaturgia de gabinete sempre foi um exercício parar o melhoramento do meu ofício – a direção – nunca me precipitei além do dramaturgo, imaginando como procederia eu se fosse o encenador da dita obra. Então, assisto como espectador, e me divirto, me emociono e me envolvo com a oferta.

No teatro, o autor do texto é um mero provocador da explosão cósmica que os atores, o encenador, o iluminador, cenógrafo, sonoplasta, se encarregam de transformar em universo; e foi esse universo que se revelou para mim, quando me encontrava sentado na segunda fila do Espetáculo Espaço Cultural, incomodado com a primeira fileira reservada e vazia, primeira surpresa que reservava a montagem, mesmo para o tolo autor que não enxergou o óbvio.

A partir daí me deparei com uma construção atoral de unidade singular, onde Tony Silva e Luciana Duarte produziam vigoroso desempenho, durante os três momentos de desconstrução pelos quais passam as atrizes. Me causou certo espanto ver a versatilidade de ambas, tendo em vista já ter trabalhado tanto com as duas que imaginava não restar muita coisa para me surpreender.

Uma direção segura, generosa, e tomada de um frescor visceral foi uma das principais surpresas. O diretor Jeyson Leonardo era para mim um estranho, pois ainda não havia aparecido nenhuma oportunidade de acompanhar suas empreitadas no universo da encenação. A revelação foi a de um artista comprometido, inquieto e expressivo, disposto a oferecer a cara a tapa sem o menor constrangimento.

Outra surpresa foi a forma esteticamente criativa que encontraram para apresentar a ausência de cenografia que a obra sugere. Mantendo o conceito, o preenchimento do vazio árido com um vazio estético, capitaneado por Damásio Costa, alargou a possibilidade de comunicação, resolvendo o desconforto provocado pela aridez excessiva, que faria com que o espectador se distanciasse.

Eu transitava entre o lúdico, o caótico, o cômico, o orgânico, o dramático, sem me aperceber do autor que se escondia atrás da minha prazerosa jornada, e não consegui enxergar nenhum excesso, ruído, ou lapso, natural para um espetáculo que inicia sua trajetória – que espero, torcendo, seja longa, inspiradora e divertida.

A única pergunta que me faço é quanto à opção na forma e conteúdo das duas desconstruções que se sucedem – nas cenas de transição entre um momento e outro –, quando me inquietava a curiosidade de saber qual foi a análise que fizeram para chegar à opção encenada. Como minha passagem por Mossoró foi como um relâmpago, não tivemos aqueles saborosos momentos de intimidade, que proporcionariam o aprofundamento do diálogo sobre essa peculiar opção, que, de alguma maneira, repaginou o segundo momento da peça – momento este que sempre me pareceu problemático de sustentar.

Espero que esta querida parceira nunca pare, e que sua máscara continue a espantar o espectador, distribuindo arte a partir desse epicentro teatral tão querido e improvável, esse país chamado Mossoró.

Marcelo Flecha

Diretor e dramaturgo, é um dos idealizadores da Pequena Companhia de Teatro, de São Luís (MA). Publicou o livro Cinco Tempos em Cinco Textos: Dramaturgia Reunida

 

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