Fui espectador da primeira montagem profissional do texto “Dois”, terceiro texto da minha dramaturgia reunida publicada em 2011, pelo Programa BNB de Cultura, com o apoio do SESC–MA. O desafio ficou a cargo da queridíssima e parceira Cia. A Máscara de Teatro, de Mossoró, por consequência, o afeto me impede de tecer qual seja a crítica digna de confiança, pois minhas palavras seriam suspeitíssimas, mas não vou me privar de aprofundar o meu olhar sobre as ofertas que a montagem proporciona para o espectador, esse catatônico das plateias, como prega o próprio texto.
A experiência do autor teatral como espectador da própria obra é algo diferente de tudo o que um artista possa experimentar; principalmente no meu caso, onde a intenção de montagem jamais permeou meus pensamentos quando da escrita dos cinco textos que fazem minha dramaturgia. Como a dramaturgia de gabinete sempre foi um exercício parar o melhoramento do meu ofício – a direção – nunca me precipitei além do dramaturgo, imaginando como procederia eu se fosse o encenador da dita obra. Então, assisto como espectador, e me divirto, me emociono e me envolvo com a oferta.
No teatro, o autor do texto é um mero provocador da explosão cósmica que os atores, o encenador, o iluminador, cenógrafo, sonoplasta, se encarregam de transformar em universo; e foi esse universo que se revelou para mim, quando me encontrava sentado na segunda fila do Espetáculo Espaço Cultural, incomodado com a primeira fileira reservada e vazia, primeira surpresa que reservava a montagem, mesmo para o tolo autor que não enxergou o óbvio.
A partir daí me deparei com uma construção atoral de unidade singular, onde Tony Silva e Luciana Duarte produziam vigoroso desempenho, durante os três momentos de desconstrução pelos quais passam as atrizes. Me causou certo espanto ver a versatilidade de ambas, tendo em vista já ter trabalhado tanto com as duas que imaginava não restar muita coisa para me surpreender.
Uma direção segura, generosa, e tomada de um frescor visceral foi uma das principais surpresas. O diretor Jeyson Leonardo era para mim um estranho, pois ainda não havia aparecido nenhuma oportunidade de acompanhar suas empreitadas no universo da encenação. A revelação foi a de um artista comprometido, inquieto e expressivo, disposto a oferecer a cara a tapa sem o menor constrangimento.
Outra surpresa foi a forma esteticamente criativa que encontraram para apresentar a ausência de cenografia que a obra sugere. Mantendo o conceito, o preenchimento do vazio árido com um vazio estético, capitaneado por Damásio Costa, alargou a possibilidade de comunicação, resolvendo o desconforto provocado pela aridez excessiva, que faria com que o espectador se distanciasse.
Eu transitava entre o lúdico, o caótico, o cômico, o orgânico, o dramático, sem me aperceber do autor que se escondia atrás da minha prazerosa jornada, e não consegui enxergar nenhum excesso, ruído, ou lapso, natural para um espetáculo que inicia sua trajetória – que espero, torcendo, seja longa, inspiradora e divertida.
A única pergunta que me faço é quanto à opção na forma e conteúdo das duas desconstruções que se sucedem – nas cenas de transição entre um momento e outro –, quando me inquietava a curiosidade de saber qual foi a análise que fizeram para chegar à opção encenada. Como minha passagem por Mossoró foi como um relâmpago, não tivemos aqueles saborosos momentos de intimidade, que proporcionariam o aprofundamento do diálogo sobre essa peculiar opção, que, de alguma maneira, repaginou o segundo momento da peça – momento este que sempre me pareceu problemático de sustentar.
Espero que esta querida parceira nunca pare, e que sua máscara continue a espantar o espectador, distribuindo arte a partir desse epicentro teatral tão querido e improvável, esse país chamado Mossoró.
Marcelo Flecha
Diretor e dramaturgo, é um dos idealizadores da Pequena Companhia de Teatro, de São Luís (MA). Publicou o livro Cinco Tempos em Cinco Textos: Dramaturgia Reunida