
Edson Krenak (esquerda), autor do livro O Sonho de Borum. Img: arquivo pessoal do escritor.
Edson Krenak é autor do livro O Sonho de Borum, lançado em maio deste ano pela Editora Autêntica. O sobrenome Krenak, que assumiu para assinar seu livro, é homônimo ao do povo do qual é descendente. Seu povo foi vítima de constantes massacres ditos como guerras justas pelo governo colonial e, assim como acontece com outros povos indígenas de nosso país, pouco a pouco foram perdendo seu lar. Hoje vivem em uma reduzida área reconquistada com muita batalha, às margens do Rio Doce, em Minas Gerais.

Capa de seu livro, lançado este ano.
O escritor também é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e foi quando voltou à universidade, para falar sobre seu livro e discutir os paradigmas da literatura indígena no “Fórum de Debates: Culturas indígenas e literatura: reflexões”, que tivemos a oportunidade de falar com ele.
Sempre muito crítico e atento às questões da feitura e da relação que o livro, a literatura, passou a desempenhar nas culturas indígenas, Edson conversou conosco sobre todas as questões que permeiam o fazer literário indígena atualmente. Leia a entrevista:
Livre Opinião – Ideias em Debate: O que significa, atualmente, ser um escritor indígena, ou fazer literatura indígena – especialmente no Brasil?
Edson Krenak: Significa retomar uma voz que fora silenciada, proibida, cassada na História, desde a colonização até os dias atuais. Ser um escritor indígena é, de alguma forma, recolher cacos da História, resgatar e proteger as tradições, a ancestralidade.
LOID: O escritor Daniel Munduruku, no blog Overmundo, disse que “A escrita é uma conquista recente para a maioria dos 230 povos indígenas que habitam nosso país desde tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral […] estes povos sempre priorizaram a fala, a palavra, a oralidade como instrumento de transmissão da tradição […] A memória é, pois, ao mesmo tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e encontrar novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais”. Para você, Edson, a escrita veio para perpetuar esse resgate memorialístico antes realizado pela oralidade, ou também para rasurar e abrir novos horizontes na literatura indígena?
Edson: Depende do povo. Os códigos escritos estão presentes em quase todos os povos do mundo, incluindo obviamente os indígenas. DM refere-se especialmente à tecnologia da escrita em livros, no papel e, sobretudo, à escrita alfabética. Muitos povos indígenas sempre usaram diferentes formas de inscrição, escrita e símbolos gráficos para serem auxiliares da memória oral, das narrativas e tradições rituais. Mesmo na sociedade dita Ocidental, não-indígena, a escrita tem função de resgatar e proteger os textos orais. O Ocidente possui poderosas tradições orais como o discurso político, o sermão religioso…
LOID: Devemos nos referir à literatura produzida por indígenas e descendentes como literatura indígena? Por que não apenas literatura?
Edson: A diferença do adjetivo que nomeia Indígena é essencial, pois quer se referir a uma outra tradição. Embora esse uso não seja perfeito, ideal, é o melhor que temos por enquanto. Digo isso pois deveríamos usar Literatura Krenak, Literatura Munduruku, Literatura Guarani….etc. Tal como se usa na Europa ou na África (Literatura Europeia ou Africana – o que na verdade não existe – isto é uma generalização didática…. às vezes política, claro).
LOID: Seria interessante e importante a concepção de uma crítica literária voltada a este tipo de literatura? Por quê?
Edson: Sim, claro. A crítica tem como função primordial entender para valorar ou valorizar. Neste caso a crítica, essa ponte perigosa, é feita de pedras escorregadias. Falar do outro é sempre uma tradução/interpretação… e isso sofre de incompletude. A crítica não deve separar mas aproximar, por isso ela é importante. Um pouco do preconceito e do estereótipo que sofrem as artes e literaturas indígenas é porque a crítica que se faz é fraca, infundada, usa ferramentas inadequadas e acaba se tornando antiética, pois marginaliza, menospreza o outro. Por exemplo, ao não compreenderem a suposta simplicidade de muitas narrativas indígenas, rotulam como literatura para crianças e textos ingênuos. O texto indígena é assim hoje por muitos motivos e um deles é por pertencer a uma tradição diferente dos textos da literatura chamada canônica – que muitos não entendem e as crianças e adolescentes odeiam ler. A literatura indígena em papel é uma tradução de narrativas ricas, complexas e profundas no contexto original de produção.
LOID: Em relação ao mercado editorial, como se vê o escritor indígena diante das grandes casas editoriais brasileiras? Quais espaços têm ocupado os livros destes escritores atualmente?
Edson: A indústria cultural é poderosa. Se não fossem as casas editoriais brasileiras que, por causa dos incentivos do Estado Brasileiro com suas políticas públicas pró-povos indígenas e negros, os indígenas não publicariam, ou seria muito difícil. Isso tem feito o escritor indígena estar presente nas escolas de todo o país, conversado com muitos professores e alunos apaixonados pelo mundo indígena. A literatura indígena é por isso bastante dinâmica, emergente, crescente… está vindo para ficar e desafiar a crítica, a academia, o cânone.
No entanto, não é uma relação (com os grandes grupos empresariais) livre de promiscuidade, pois o sistema capitalista e mercadológico que sustenta essa indústria é o mesmo que está lá destruindo a floresta e emperrando os direitos dos povos indígenas no Congresso Nacional. No entanto, ser indígena é viver em um clima de tensão e permanente negociação.
O que nos conforta bastante é que nesses lugares de negociação sempre há pessoas, pessoas reais e sensíveis, de todos os lados e em todos os lugares, as quais conseguem conosco enganar ou atrasar o lado monstrengo da máquina capitalista que controla nossa sociedade.
LOID: Conte-nos um pouco sobre seu livro, O Sonho de Borum, vencedor do 10º Concurso Tamoio de Textos de Escritores Indígenas e o que significou escrevê-lo.
Edson: Encontrar meu texto O Sonho de Borum na voz e nas memórias do meu pai, dos meus tios, foi levantar a cortina da história da minha família e do nosso passado. O Sonho de Borum não fala de sonho futuro apenas, mas um sonho que é puxado por uma linha do passado. São as primeiras linhas que redesenham uma identidade negada, rejeitada e agora resgatada na minha família. Ser escritor indígena é menos que um escritor profissional, mas é mais que um autor é uma expressão individualizada de uma história coletiva, de uma identidade comunitária. Ao ler O Sonho de Borum o leitor é convidado a visitar lugares, tempos e desejos de ser, do ser indígena – borum (alma verdadeira).
Entrevista: Vinicius de Andrade.
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