um novelo de lã
Laura desenrola para marcar o caminho da volta
– a Terapeuta mandou ler Alice
grande Bosta
não gosto daquela menina
ficou juntando castigos para a gata
prefiro as advertências
“vamos fazer de conta” porra nenhuma
vou resolver aqui, sem a sua ajuda
olha, mamãezinha o que eu faço com o meu cabelo. Não gosta das minhas unhas curtas e sem esmalte, Dona Supervisora?
estou cagando pra vocês. Cheguei onde queria. É hoje, minha gente. É a porra do dia do meu aniversário e eu não tenho marido não tenho filho não tenho carro. Coitadinha da barata, ela usa um barbante
“você pode ser só um deles, eu serei todos os outros”
Alice é Laura ao contrário
engasgo
Minha Mãe mandou eu escolher esse daqui
como sou teimosa, eu escolho esse daqui
Espelho Verdade Sinceridade Lua Julgamento Iluminação
espelho, espelho meu
“sobre a cabeça os aviões, sob meus pés os chapadões”
Ninguém entende o que eu digo
Ninguém gosta de mim
Ninguém é meu amigo
por isso que eu só ando com Ninguém
– vem, Ninguém! Pode entrar! É a sua vez de brincar
quando engasgo, choro pelo olho direito. Esquerdo para quem vê
sinal da cruz com a mão esquerda
– o espelho corrige meu sinal
Mamãe sabe
hoje não tem biscoito da sorte
quando eu era pequena, Minha Mãe dizia que eu parecia um peixe que ela teve: comeu até morrer. Morreu pela boca. Eu vou morrer pelo que como e pelo que falo. Da minha boca só saem cobras. Miudezas. Maledicências. Eu tomo um remédio para dor de cabeça que me dá dor de estômago e ataca meu fígado. Não tem remédio para o fígado que não provoque dor de cabeça. O médico disse que é assim. Quando morrer passa
hoje apareceu uma mancha nova no meu olho. Pode ser um dos homens que vem aqui, pode ser a Minha Mãe que me bateu com o ferro
Ninguém sabe
Ninguém precisa saber de tudo que acontece aqui
hoje não tem beijo nem presente
“só de juros você pagará o dobro do que devia”
ouviu? Ouviu agora? É a mesma voz do metrô. Ouviu?
“se a senhora preferir eu realizo a transação em outro nome”
é essa voz. A mesma do metrô. Só que aqui ela foi dublada
“verifique o código de barra”
essas palavras não são minhas
são vozes que vem para me assustar
– melhor assim ou assim?
– óculos para perto?
– perto demais
melhor assim ou assim? Óculos para longe
O Médico disse que eu precisava escrever, usar óculos e parar de mentir e mancar. O Doutor sabe tudo. Ele contou pra Mamãe. Hoje Ela vai ter uma surpresa. Vai chegar aqui e a Laurinha já vai estar dormindo. Dorme, Laurinha que a Cuca vem pegar e o boi da cara preta nunca mais vai me acordar
minhas pernas doem
Ela mandou calar a boca
por que não consigo ficar quieta, Papai do céu?
sou apenas uma menina andando de metrô. A garotinha do Papai. Eu tento ser boazinha e fazer tudo que Seu Mestre mandar
errei o caminho
errei o destino
Mamãe mandou ir pelo caminho mais longo
hoje eu não obedeço
hoje acordei com a boca cheia de pecado
a gula é o meu preferido
no escritório, finjo que é a luxúria porque as meninas gostam de falar coisas sujas. Balança caixão. Minha Mãe lavou a minha boca com sabão. Eu lavo também e não adianta. Roubaram todas as minhas canetinhas. Mamãe deixou a cinza. Cinza não é cor. Preciso de mais uma bolacha recheada, Mamãe, por favor <3
garanto que não sofro mais
Ele pediu para ler o meu caderno. Não deixei. Escrevo pra mim. Escrevo porque a Mamãe mandou
esperava por um milagre e ele não veio
Hoje prendi meu pé no vão. Entre o trem e a plataforma. Eu tenho medo do vão
– moço, me leva pra clínica?
Lá tudo é de graça. Não é de graça porque a Mamãe pode pagar. Perdi todas as pérolas falsas
três trens passaram e ele não veio
três trens tristes
“o anel que tu me destes era vidro e se quebrou. O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”
Trecho da peça que escrevi em parceria com Vana Medeiros
Adaptação do meu romance “Entre o trem e a plataforma”