Aloy Jupiara leu num documento que um agente da repressão virara segurança de um bicheiro. Chico Otavio entrevistou o coronel reformado Paulo Malhães e descobriu que ele era um dos mais importantes elos entre a ditadura e a contravenção no Rio de Janeiro. A partir dessas e de outras informações os dois jornalistas decidiram investigar a fundo as relações entre o jogo do bicho e a repressão. O resultado foi, primeiro, uma série de reportagens sobre o assunto que ora desagua no livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”.
Com uma farta pesquisa em arquivos e jornais da época e entrevistas com militares, sambistas, historiadores e advogados, entre outras fontes, os dois autores revelam na obra como os agentes da ditadura passaram a atuar no crime organizado, em aliança com os bicheiros, após o desmonte do aparelho de repressão a partir do fim dos anos 70. Esses últimos se beneficiaram da benevolência dos governos militares para garantir segurança, território e organização para seus crimes. A troca de favores era macabra: depois de fazerem desaparecer corpos dos inimigos políticos da ditadura, os agentes da repressão também matavam e torturavam os inimigos ou quem estivesse no caminho dos contraventores.
“Foi um jogo de mão dupla, uma lavava a outra. A ditadura se valeu dos bicheiros, os bicheiros se valeram da ditadura. Ainda que monitorados pelos órgãos de informação, bicheiros estiveram livres para erguer impérios do jogo a partir de uma guerra nas ruas pela tomada de territórios. Excluindo a prisão de bicheiros após o AI-5, o regime militar não viu ou não quis ver perigo no bicho, não avaliou a periculosidade dos bicheiros e de sua aliança com agentes da repressão, isso que tornou o jogo a organização criminosa, estruturada como a máfia, que é hoje”, explica Chico Otavio.
Sem serem incomodados pela repressão, e atuando em favor dela, por meio dos esquadrões da morte, por exemplo, os bicheiros ganharam poder. Mas faltava a fama e o prestígio: ela veio quando passaram a ocupar um dos mais representativos espaços da cultura carioca: as escolas de samba. O negócio também se expandiu e eles passaram a explorar as máquinas de caça-níqueis. Três nomes sobressaem nessa história: Anísio Abraão David, capo da Beija-Flor, Castor de Andrade, “dono” da Mocidade Independente, e Capitão Guimarães, este egresso do Exército, que “tomou” a Vila Isabel do então presidente Miro, que se “instalou” depois no Salgueiro.
“Quando o desfile das escolas se popularizou, atraindo a classe média, cresceu e virou espetáculo, os bicheiros se apropriaram de agremiações para ganhar exposição, tentar limpar a imagem e passar a ser vistos como mecenas. Eles se aproveitaram da falta de recursos dos sambistas, que não tinham como bancar carnavais cada vez mais caros. Os bicheiros tinham capital de giro, o dinheiro da jogatina; com ele, as escolas não precisavam esperar a subvenção pública para começar a fazer as alegorias e fantasias. O poder nas escolas, claro, mudou de mãos. Como o carnaval é uma disputa e os sambistas querem que suas escolas sejam campeãs, aceitaram o jogo”, afirma Aloy, que é jurado do concurso Estandarte de Ouro, promovido pelo jornal O Globo.
O livro chega às livrarias em novembro, pela editora Record.
ORELHA
Por Carlos Andreazza
Este livro-reportagem é daqueles, raros, que esgota – destrincha até não sobrar dúvida – o assunto a que se dedica: a histórica e macabra sociedade entre jogo do bicho e ditadura militar. E vai muito além de escancarar – o que por si só já representaria um marco jornalístico – as manobras por meio das quais o regime não apenas protegeu, mas permitiu e mesmo estimulou, o desenvolvimento sustentável do crime organizado no Rio de Janeiro e, logo, no Brasil. Anísio, o “papai” da Beija-Flor, e Castor de Andrade, o benfeitor da Mocidade Independente, cresceram e apareceram (não sem muito sangue) nesse cenário.
Neste Os porões da contravenção, Aloy Jupiara e Chico Otavio recriam a fauna de terror em que os bicheiros foram buscar os braços que lhes garantiriam segurança, território e organização. São dezenas de oficiais, cabos, majores, sargentos, isso sem falar em policiais, agentes todos da repressão, alguns egressos da Casa da Morte de Petrópolis, cooptados pelos bicheiros para jornadas duplas de barbárie: torturando, matando e fazendo desaparecer corpos para a ditadura; torturando, matando e fazendo desaparecer corpos para os contraventores. Capitão Guimarães surgiria aí. Militar com trânsito livre nos calabouços da tortura, torturador ele mesmo, líder de uma tropa de meliantes, contrabandista quando ainda fardado, ascendeu entre os capos articulando noções de hierarquia militar – disciplina através da qual botou ordem nas bancas e profissionalizou o jogo – e o emprego de violência ilimitada.
Não existia – não existe – ideologia para mafioso. Quando a ditadura militar acabou, e mesmo antes de seu fim formal, já estavam todos perfeitamente integrados à (fantasiados de) democracia. (Brizola, Moreira Franco e até Darcy Ribeiro que o digam). Enquanto Sarney tomava posse em Brasília, os bicheiros fundavam no Rio a Liga Independente das Escolas de Samba, a Liesa, instrumento com o qual, numa só tacada, privatizariam o carnaval, ascenderiam socialmente (com acesso livre na comunidade inconsciente e irresponsável do high-society carioca) e se limpariam de duas décadas de parceria com a repressão.
Este livro deverá – deveria – incomodar alguns jornalistas, aqueles que, finda a ditadura militar, enquanto esbravejavam (e esbravejam) contra a injustiça social e a opressão da elite, assumiram para si, em troca (na melhor das hipóteses) de camarotes com uisquinho liberado no ambiente pouco republicano das escolas de samba, a proteção e mesmo a exaltação, como se inofensivos homens de bem e do povo, de bandidos cruéis e assassinos.
Sem que seja seu objetivo, esta obra-prima do jornalismo deixa no ar, por fim, muitos elementos a quem quiser responder a seguinte questão: por que as únicas outras atividades criminosas liberadas nas favelas comandadas pelo narcotráfico são o jogo do bicho e as máquinas caça-níquel? (Mas aí já será matéria para o estudo de outra sociedade).
SOBRE OS AUTORES
Aloy Jupiara é jornalista e gerente de projetos na Diretoria de Inovação Digital da Infoglobo. Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ, entrou no jornal O Globo em fevereiro de 1987 como estagiário, sendo contratado em seguida como repórter da editoria Rio. Em 1991 assumiu a pauta e, quatro anos depois, virou subeditor. Trabalhou na editoria Nacional do jornal, com coordenador e subeditor, entre 1996 e 2000. Ajudou a criar e foi editor de conteúdo do Globonews.com, uma parceria entre a Infoglobo, a Globo.com e a Globonews TV, que entrou no ar em setembro de 2001. Em 2004, tornou-se editor-executivo de projetos especiais do Globo Online. Dois anos depois, na reformulação do site, passou a editor-executivo de interatividade, quando criou a seção Eu-Repórter, de conteúdo gerado por usuários. Em 2009, foi convidado a ocupar o cargo de editor-executivo do site do Extra e, com o novo site no ar, passou a gerente de produtos digitais. Participou da equipe de pesquisadores que elaborou o dossiê-base do pedido ao Iphan de registro do partido-alto, do samba de terreiro e do samba-enredo como patrimônios culturais brasileiros, concedido em 2007. Integra desde 1998 o júri do Estandarte de Ouro, prêmio do jornal O Globo para os sambistas.
Chico Otavio é repórter de O Globo e professor de redação jornalística na PUC-Rio. Começou em 1985 como repórter de Cidades da Última Hora, onde também cobriu a área sindical. Trabalhou em seguida na sucursal carioca do Grupo Estado, produzindo reportagens de temas variados para os jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde, e para a Agência Estado. Em 1997, transferiu-se para O Globo, atuando até 2015 como repórter de País. Transferiu-se depois para um grupo de repórteres ligado ao comando da redação. Cobriu todas as campanhas eleitorais desde os anos 1990. Na década seguinte, ajudou a fundar a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), da qual foi vice-presidente. Ganhou sete vezes o Prêmio Esso em várias categorias, entre outros prêmios, ao longo da carreira — um deles, em 1999, sobre o atentado a bomba no Riocentro, com os colegas Amaury Ribeiro Jr. e Ascânio Seleme. Em 2014, ficou entre os cem jornalistas mais admirados do Brasil, pesquisa feita pelo Jornalistas&Cia.
OS PORÕES DA CONTRAVENÇÃO
Aloy Jupiara e Chico Otavio
Páginas: 266
Preço: R$ 45,00
Editora: Record / Grupo Editorial Record
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