O Brasil é um país de Divas e de Damas. Tal afirmativa não constitui um exagero, pelo contrário, numa época em que a memória cultural parece ter deixado de ser uma preocupação de parte da própria classe intelectual e acadêmica, trata-se, na verdade, de uma necessidade e de uma emergência.
É certo que se uma parte (ainda que pequena, bem da verdade) da classe acadêmica, que tem os seus quadros renovados com a entrada de novos concursados, considera pouco saudável o olhar cuidadoso para o passado, num gesto de reconhecimento daqueles que contribuíram para a trajetória de tantos sucessores, é preciso frisar que se trata exclusivamente de uma parte pequena e com algumas características bem definidas com um gesto deste quilate. No fundo, toda esta revolta inexplicada pelo passado, ou pela tradição, não é nova, remonta a épocas e situações milenares. Na minha opinião (e friso que se trata de uma “livre opinião”, como o próprio nome do site indica), constitui uma forma muito restrita, para não dizer mesquinha e mal informada, de entender o mundo. Talvez, por uma fatalidade do destino ou de forças sobrenaturais que desconhecemos (felizmente!), tais linhas de pensamento acabaram caindo dentro de setores e espaços onde não deveriam existir ou circular.
Peço desculpas aos leitores pela linguagem excessivamente metafórica, mas não se pode simplesmente jogar o passado fora como se fosse algo descartável e sem valor. A memória cultural é um bem precioso e, talvez, o principal responsável pela manutenção das nossas atividades, do nosso pensar o futuro e, acima de tudo, de nossa motivação para não parar de trabalhar, estudar, pesquisar e melhorar como profissional e como ser humano.
Iniciei o ano de 2015 com um texto de apresentação sobre duas grandes Damas da cultura brasileira: de um lado, Dona Cleonice Berardinelli (na literatura), e, de outro, Maria Bethania (na música). Duas Divas, cada uma delas atuando em campos distintos das Artes. Ao longo deste ano, em outros momentos, tive ainda a oportunidade de destacar figuras importantes da nossa história e do nosso meio cultural. Por isso, não poderia encerrar esta sequencia, principiada com Fernando Pessoa lido por Dona Cléo e Bethania, sem novamente falar de outra Grande Dama: Marília Pera.

Atriz Marília Pera. Img: rd1.ig.com.br
Falecida há poucas semanas, a atriz foi (ou, será melhor dizer, É) uma unanimidade entre os seus colegas e expectadores. Trata-se de uma artista singular, de uma leitora sensível e intérprete competente de personagens que se tornaram inesquecíveis no imaginário coletivo: de Maria Callas (em Master Class) à Maria Monfort (em Os Maias), de Juliana (O primo Basílio) à Carmen Miranda (Marília Pera canta Carmen Miranda), de Rafaela Alvaray (Brega e chique) a Florence Foster Jenkins (Gloriosa), de Dalva de Oliveira (A estrela Dalva) a Coco Chanel (Chanel), Marília Pera deixou uma variedade de criaturas que se colaram definitivamente à figura da intérprete a ponto de não se conseguir pensar numa sem imaginar a outra.
No seu mais recente trabalho na televisão, a personagem Darlene, de Pé na cova, a atriz e cantora conseguiu imprimir uma característica única, sem cair na figuração do caricato, ainda que muitas criaturas da trama esbarrem nesta categoria de maneira proposital.
Olhando, portanto, todo o repertório de heroínas, vilãs, protagonistas, enfim, personagens femininas fortes e contundentes, frágeis e hipersensíveis, o leitor logo percebe uma gama múltipla de facetas e de características distintas e, por vezes, extremamente opostas e distantes. Aí, acredito eu, reside o talento e a genialidade desta atriz. Saber imprimir uma cor sua, particular, a algumas criaturas já conhecidas do próprio público. Por isso, a minha idéia de que, mais do que uma atriz e intérprete competente, Marília Pera foi uma grande leitora destas personagens, dando a cada uma delas uma subjetividade que passava inegavelmente pela sua maneira sensível de ver e de estar no mundo.
Conhecida pela sua disciplina e pela seriedade, não será demasiado ou exagerado afirmar que a atriz é um exemplo para as gerações mais novas. E nisso, é preciso destacar também a importância de Miguel Falabella. Ator, escritor e diretor, trata-se de outro artista preocupado com a questão da memória cultural.
Nos anos de 1990, com o programa Sai de baixo, esteve ao lado de Aracy Balabanian e, por mais de uma vez, ao longo de certas cenas cômicas, fazia questão de destacar a atriz como uma das mais importantes do cenário brasileiro. Já no início dos anos 2000, em Toma lá, dá cá, agora, sob sua responsabilidade diretiva, Miguel Falabella dá um lugar de destaque a outra grande atriz: Arlete Salles, além de tirar das sombras (de um esquecimento inexplicável) a atriz Norma Benguell e o ator Ítalo Rossi. Por fim, na década de 2010, com Pé na cova, Miguel Falabella põe numa evidência mais do que merecida a atriz Marília Pera. Com este breve resumo, não se pode negar o papel relevante que este ator, escritor, diretor e multi-artista tem na recuperação e na manutenção definitiva de uma memória cultural na teledramaturgia brasileira.
Ele próprio, num discurso muito emocionado, no velório da atriz, chegou mesmo a declarar que, na gravação dos episódios, chegava mesmo a não reconhecer o que havia escrito, tal a grandeza com que Marília Pera interpretava as falas de sua personagem. Generosidade visível, é claro, mas mais uma prova de que se tratava, realmente, de uma leitora cuidadosa e sensível.
Por isso, outro não poderia ser o título de sua biografia, escrita a quatro mãos com Flávio de Souza: “Vissi d’arte: 50 anos vividos para a Arte” (São Paulo: Escrituras, 1999). Valendo-se dos famosos versos da ária de Tosca, protagonista da ópera homônima de Giacomo Puccini (“Vissi d’arte, vissi d’amore, non feci mai male ad anima viva!” / “Eu vivi para a arte, eu vivi para o amor, nunca fiz mal a uma alma viva”), o texto deixa uma impressão precisa e rica desta grande dama. Realmente, viveu para a Arte e para o amor, talvez, por isso, o risco de Marilia Pera cair no esquecimento seja praticamente nulo. Assim, eu acredito. Num momento em que exemplos de dignidade parecem ser uma espécie em extinção, a atriz deixa um modelo paradigmático.
Da comédia à tragédia, do teatro ao cinema, das telenovelas às minisséries, não há o que se discutir: ela foi uma atriz de primeira grandeza. Por isso, é possível afirmar que o Brasil é um país de Divas e de Grandes Damas. E Marília Pera figura, muito justamente, entre elas.
Desta vez, diferente de como sempre termino esta coluna, posso afirmar que não se trata apenas de uma livre opinião, mas também de uma opinião partilhada coletivamente com muitos outros leitores. Ainda bem, porque isso pode ser um sinal de esperança, afinal, o que seríamos de nós sem a memória cultural daqueles que contribuíram para construí e consolidar o mundo das Artes?
Que 2016 seja um ano iluminado para todos. E que as luzes, seja as da ribalta, seja as de um espaço superior transcendente, clareiem os nosso passos e os nossos objetivos!
São Carlos, 27 de dezembro de 2015.
Referências Bibliográficas:
PERA, Marília & SOUZA, Flavio de. Vissi d’arte: 50 anos vividos para a Arte. São Paulo: Escrituras, 1999.
https://www.youtube.com/watch?v=t7Wwg2tvPvQ