no carro
o rádio
entre o banco do meu pai e o meu,
não só geograficamente o rádio embutido no meio da gente, também alegoricamente o rádio
divisor
dos que não falam, não sabem falar além das questões práticas como:
-você me pega às 11?
-pego, claro.
-bom trabalho.
-até depois.
conversas com horários não são conversas, são
esquemas.
estávamos rumo à escola pelo caminho mais longo só que
sem trânsito
por isso
mais rápido.
o carro do meu pai seguia em velocidade
60
70
80 querendo chegar.
ele segurava o volante com a mão morena e
grande que faz tempo
não sinto em mim. temos manchas parecidas nas mãos, todo pai e filho tem uma história engraçada pra contar: não lembro da nossa.
quando meu pai morrer
vou colocar a mão dele no meu rosto como eu gostaria de fazer agora e não consigo. na morte
a mão
estará gelada e disponível,
teve um dia que eu quis
beijar meu pai
na boca.
eu tinha 7
anos, acordei domingo com a casa
dormindo: fui espiar.
vi na cama meu pai inerte no sono de um menino com pijama de abandono,
deu vontade
de cuidar a boca dele
estava aberta, cheguei a sentir
o cheiro
quente
mas quando eu estava quase
Desisti.
Algo entre
a minha boca e a dele
me travou, deve ter sido o fato de que ele
me Fez e esse
é o ápice, não há contato físico que seja mais profundo do que nascer por culpa de alguém.
no carro
o rádio
sem pausa,
a pausa nos meios de comunicação como a tv
significa que
alguma coisa importante deu bastante
errado, também na vida é assim. o silêncio
deixa um exército
Nu.
o rádio dizia:
o homem atropelado na marginal
atrapalhou;
o dólar tá tão alto que agora mora no céu;
sexta feira no cinema estreia o filme Bruta;
sem luz no bairro da Luz;
você que é sagitário
abuse
de tons
azuis;
e meu pai absorvente
das notícias zero úteis, e eu
mascando goma
tentando fazer
uma ponte
que me levasse
pra depois
do país que fica entre nós dois, um lugar em que pais e filhas mudos
podem conversar um pouco
como se cada Tarde só terminasse quando a gente quisesse que
sim.
em distâncias físicas meu banco do dele não dava 1 braço.
em distâncias filosóficas era o anel de Júpiter
esticado.
com a goma eu só consegui fazer uma bola que estourou
inesperada
e grudou no meu cabelo, foi um saco
pra tirar.
meu pai não viu
nem meu chiclete estourado no rosto,
nem a minha sede de fazer 1 ponte.
cheguei na escola. Saí do carro. se por acaso eu não o visse mais
nunca ainda
eu tinha o visto.