“Quanto mais o tempo passa, mais eu me sinto estrangeira. Cada vez mais eu tenho consciência do meu sotaque e que minha voz é uma ofensa pro ouvido deles”. Assim somos apresentados a Alex, uma das protagonistas do filme Terra estrangeira (1996), de Walter Salles, referindo-se à sua sensação de mulher e cidadã brasileira em território luso e à sua experiência na relação estabelecida entre brasileiros e portugueses.
É claro que não é com esta visão ácida e agudamente crítica que o leitor se depara ao defrontar-se com as páginas de Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), texto de ficção do escritor brasileiro Luíz Ruffato. Mas, também, parece-me inegável o diálogo intertextual que a pequena narrativa (e, friso, que o termo “pequena” refere-se exclusivamente à sua extensão) de Ruffato estabelece com o filme brasileiro de 1996. Talvez, porque alguns elementos ainda permanecem intactos nesta representação do espaço além-mar por olhos brasileiros: as dificuldades encontradas na inclusão dos estrangeiros; a marginalidade vivida na experiência do contrabando, das drogas e da prostituição; o olhar discriminador sobre os que vêm de fora, sobretudo sobre os africanos; a inexistência de laços de solidariedade no compartilhar a experiência da evasão e do exílio; a condição de escravidão estabelecida pela venda de passaportes; o sonho perdido de encontrar no outro lado do Atlântico um outro e possível El Dourado.
Mas, não se iluda o leitor, porque diante de situações tão deteriorantes, Luíz Ruffato não opta pela acidez, ainda que por vezes ela não seja tão inverossímel. Ao criar a trajetória de Sérgio de Souza Sampaio, o autor aposta numa ligação imediata com o leitor. Neste sentido, a nota introdutória explicativa do teor narrativo – trata-se do “depoimento, minimamente editado” do protagonista, “gravado em quatro sessões, nas tardes de sábado dos dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005, nas dependências do Solar dos Galegos, localizado no alto das escadinhas da Calçada do Duque, zona histórica de Lisboa” (p. 13) – direciona as investidas de um pacto (quase) autobiográfico.
Se lembrarmos que, como Serginho (como é chamado ao longo do romance), o autor também é de Cataguazes, estado de Minas Gerais, e que, como a criatura romanesca, o criador igualmente perambulou pelas ruas de Lisboa, em 2007, não será difícil perceber uma ligação com inferências autobiográficas, logo de início desfeitas, é bem verdade, já que supostamente o autor o teria encontrado na “zona histórica de Lisboa”. Aliás, parece que, deste mesmo espaço, começa a se esboçar uma visão outra das relações históricas entre os dois países.
Não se trata, portanto, de um tema particularmente novo, se pensarmos que as relações luso-brasileiras já se tornaram ponto de pauta de discussões bilaterais, seja no universo da criação artística, seja no da crítica acadêmica e universitária. Luiz Ruffato, contudo, longe de abordar a temática de forma laudatória ou, no sentido inverso, de maneira ácida e irremediavelmente crítica, investe numa representação, digamos, lúdica, marcada pela comicidade e pela inventividade imaginativa, mas sem perder de vista, é claro, uma perspectiva crítica, mas que não depende dela ou a ela se reduz.
O suposto pacto de verossimilhança com cores (quase) autobiográficas gradualmente vai se diluindo ao longo das páginas, sobretudo quando o leitor se depara com a trajetória de Sérgio dividida em dois momentos aparentemente sem importância: “Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar”. A opção pela primeira pessoa pode ser encarada como uma escolha feliz do autor, já que, ao recuperar o relato de um terceiro, o narrador em primeira pessoa constitui o próprio terceiro, descartando, portanto, a possibilidade do receptor desempenhar tal função ou com ela ser confundido. Vale aqui lembrar que a construção do foco narrativo no texto de Ruffato faz consonância com aquela categorização de um certo narrador pós-moderno, desenhada por Silviano Santiago (1989), qual seja, de um narrador voltado para e interessado pelo outro. Com seu olhar captador de imagens, paisagens, situações e incidentes circundantes a este outro, ao dar-lhe a capacidade de fala (já que o próprio Sérgio narra as suas andanças em Portugal, em primeira pessoa), o narrador/narratário, que grava o depoimento deste outro narrador, acaba, na verdade, por dar voz também a si próprio, pois se torna uma espécie de repórter da vida alheia, sem, no entanto, descartar a sua experiência.
Relacionando o título do romance com o seu conteúdo, porém, fica no leitor a sensação de que o texto operacionaliza uma narrativa de memórias, o que, de certa forma, se chocaria com aquela concepção de um narrador/narratário repórter da vida alheia, na concepção de Silviano Santiago. Sugestão, no entanto, salutarmente mal resolvida, já que o protagonista, no final da narrativa, ainda encontra-se em Lisboa. Logo, quem esteve em Lisboa e de quem seria a tal “lembrança” mencionada no título? Do próprio “autor” do relato editado, o protagonista Sérgio? Do seu receptor, espécie mesmo de narratário, sugerido pelas letras “L. R.”? Ou, ainda, de ambos, criador e criatura, aglutinados no texto ficcional?
Se tal artimanha já deixa o leitor magnetizado em tentar resolver este primeiro enigma, aliás, felizmente sem solução aparente, o que dizer, por exemplo, da felicíssima opção das epígrafes? Como já o fizera em Eles eram muitos cavalos, ao retirar dos versos de Cecília Meireles o título do seu romance, Luíz Ruffato volta a dialogar com a poesia, agora com os versos de Miguel Torga, poeta português que passou a infância no Brasil (de 1920 a 1925) e para onde retornou anos mais tarde, desta feita em visita (1954). Mas, se o romance traz à tona os vagares de um brasileiro em Portugal, qual o objetivo de colocar os versos dum poeta português que também vagou em tempos remotos por terra estrangeira?
Ora, o poema “Brasil”, retirado do Diário XI, de Miguel Torga antecipa já o diálogo com o teor nostálgico e amarguradamente saudoso daqueles que partem, experimentam a evasão exílica e retornam com um olhar melancólico sobre um certo “Cais do lado de lá” do destino. Agora, numa direção inversa, mas não menos dialogante, a perspectiva recai sobre o olhar de um brasileiro, que, em terra estrangeira, parece também vivenciar subjetivamente aqueles “Dois pólos de atracção do pensamento! Duas ânsias opostas nos sentidos!”
Seja do lado português, olhando para o Brasil e sobre o próprio Portugal, seja do lado brasileiro, vislumbrando uma terra estrangeira de oportunidades e o provincianismo de sua cidade natal, Luíz Ruffato investe em pólos de atração do pensamento, em ânsias opostas nos sentidos, já que não é com uma visão única e acidamente crítica que pinta as cores desta Lisboa ficcional. Espécie mesmo de um drama giocoso, as idas e vindas de Serginho em Lisboa esbarram em situações risíveis, para não dizer cáusticas.
O que dizer, por exemplo, da sua viagem para Portugal, descrita como uma verdadeira romaria, com direito à parada da cidade de Cataguazes, com cartazes e festa de despedida? No ônibus, depois do alarde da irmã, Semíramis, todos os passageiros ficam curiosos sobre a figura que intenta viajar para longe. Ou então, como não se deliciar com a figura do casal de hospedeiros no Hotel de Viseu? A mulher, sistematicamente antipática, rejeita a inserção do brasileiro no seu estabelecimento. Apenas para a contrariar, o homem, seu Seabra, retornado das ex-colônias ultramarinas africanas, manco e nitidamente insatisfeito com a política portuguesa da época em “abondonar as colônias pros pretos” (p. 42), aceita o jovem mineiro. Isto sem falar, é claro, nas suas aventuras pela “rua Conde Redondo, passarela de travestis e prostitutas, tudo tão misturado, que, deus me perdoe, a gente indistingue quem é o quê” (p. 58-59), na tentativa de conseguir uma companhia feminina noturna.
Neste passeio, esbarra com uma alemã, que cobra quarenta euros por um “engate” de “menos de meia hora” (p. 60), e depois com Sheila, brasileira que se prostitui em Lisboa, mas que, na verdade, se encontra envolvida com o tráfico de passaportes. Graças a ela, o protagonista além de brasileiro e estrangeiro, torna-se também ilegal e marginal, porque vende o seu passaporte para ajudar a sua nova amiga. Não é surpresa alguma, portanto, quando o narrador revela que “A Sheila, depois do episódio dos passaportes, não avistei mais” (p. 79).
Mas nem tudo são apenas desventuras para Sérgio, posto que, para o leitor, os passos narrados se tornam um relato corrosivo que incitam profundas reflexões. Ao longo de sua trajetória em Portugal, algumas informações veiculam uma visão interrogativa das relações estabelecidas entre os dois povos de língua irmã e dos lugares-comuns (carregados de um olhar remanescentemente preconceituoso) construídos sobre certas situações. Basta, neste sentido, observar as falas de seu Peixoto e dona Celestina, dois portugueses do restaurante onde o narrador trabalha como garçom. Ao apresentar Sheila como sua “Prima”, recebe do primeiro o veredito: “Puta”, e da mulher, o vaticínio em feitio de lugar-comum: “Brasileira? Então é rameira” (p. 62).
Outro dado relevante é a nítida metamorfose por que passa a expressão lingüística do narrador. Na segunda parte do romance, os negritos e os itálicos não apenas indicam uma diferença vocabular e semântica no seu relato, mas também uma absorção aos costumes, às falas e às formas de pensar dos que com ele convivem e repartem o mesmo espaço lisboeta. Comparado com a primeira parte, narrada ainda no Brasil, os termos destacados não deixam de despertar a curiosidade e o riso do leitor, mas também apontam para uma crítica velada do autor: quem não se enturma, mais deslocado fica. Se para Alex, de Terra estrangeira, o sotaque brasileiro soa como uma ofensa aos ouvidos lusos, para Sérgio, torna-se uma necessidade de sobrevivência.
Aliás, sobrevivência que o protagonista dribla com a maestria do gênio brasileiro. Além de remediar uma situação irremediável, para o leitor fica a sensação de que o mais importante não é o não ser descoberto, mas a última fala do narrador: “entrei numa tabacaria, pedi um maço de SG, um isqueiro, terei um cigarro, acendi e voltei a fumar” (p. 83). Talvez esta, no final das contas, seja a melhor lembrança relatada e editada.
São Paulo, 29 de janeiro de 2016
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
TORGA, Miguel. Diário XI. Lisboa: Dom Quixote, 1999.
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