Nos idos anos de 1990, quando, deliberadamente, a parte destinada à literatura (ficando esta inserida dentro de um contexto maior das “linguagens” – que, a meu ver, parece tudo englobar, mas nada explica especificamente) foi retirada do Exame Nacional do Ensino Médio, lembro que o jornal O Globo publicou uma interessante crônica, intitulada “Querem matar a literatura”. Infelizmente, não a consegui recuperar. Como, na época, estava diretamente envolvido com o magistério da disciplina nas turmas de Ensino Médio, do Colégio Gama Filho – Piedade, li este texto com muito interesse e dele me recordo com alguma nitidez. Por isso, deixo o título desta minha coluna entre aspas, em respeito ao autor (e ao seu texto, é claro) que, já naquele tempo, apontava lucidamente um caminho perigoso de (quase?) apagamento de uma parte da memória cultural do país.
Agora, colocada em discussão até a primeira quinzena deste mês, está na berlinda a retirada da obrigatoriedade do ensino da literatura portuguesa na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ministério da Educação. A meu ver, trata-se de um gesto puramente político, tentando sufocar definitivamente uma parte importante na formação de nossa cultura e de nossa própria identidade. Deixar de lado textos como os de um Luis de Camões, de um Eça de Queirós e de um Fernando Pessoa, à primeira vista, soa como um gesto de pura ignorância cognitiva, para não dizer, educacional e cultural.
A repercussão disto, é óbvio, não poderia ser outra. Do lado de lá do Atlântico, os jornais portugueses acentuam esta “renovação” (coloco entre aspas porque me recuso a entender um gesto deste como renovador…) como algo impensável dentro do universo globalizado de língua portuguesa (http://www.dn.pt/sociedade/interior/literatura-portuguesa-deixa-de-ser-obrigatoria-no-brasil-5039149.html). E do lado de cá, no Brasil, a Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (ABRAPLIP), principal órgão que concentra e reúne os professores e pesquisadores da área, manifestou-se de maneira pontual e contundente, com o texto divulgado pela sua atual Presidente, a Profa. Dra. Patricia Cardoso (UFPR), e a abertura de uma petição pública (cf. final desta coluna). Também Flora Bender Garcia e José Ruy Lozano, em crônica no jornal Folha de São Paulo (29/01/2016), resumem de maneira exata e direta toda esta situação: “A proposta beira o absurdo” (http://m.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734307-literatura-portuguesa-naufraga-no-brasil.shtml?cmpid=compfb).
Escritores, pesquisadores, professores, intelectuais e jornalistas são contundentes em se posicionar contra uma arbitrariedade deste tipo. E pode se chamar, sim, uma arbitrariedade porque se esta medida pretende ser colocada na Base Nacional Comum Curricular, ou seja, dentro dos alicerces que normatizam e indicam os caminhos da educação no Brasil, onde estaria o quadro de sugestão e de consulta aos profissionais da área, exatamente aqueles que lidam com o assunto no cotidiano de sala de aula? Ou seja, as Bases parecem ser pensadas por pessoas que não se valem do diálogo ou da conversa com os profissionais envolvidos, resultando, assim, numa retirada unilateral de uma parcela importante na formação do indivíduo brasileiro.
Neste sentido, pergunto-me (fazendo coro com Isabel Pires de Lima), o que fazer com a “Carta” de Pero Vaz de Caminha, texto fundador da nação brasileira e de toda uma gama literária, fundamentada nas literaturas de viagens? Ou, ainda, onde e como tratar um Padre António Vieira, com a sua língua crítica e pontual aos desmandos dos governadores e líderes da sua época? Ou como lidar (como bem pontuou o poeta, tradutor e professor Albano Martins) com Tomás António Gonzaga que, como Vieira, é considerado parte dos dois universos de língua portuguesa?
Se não bastassem tais incoerências, poderíamos pontuar outros problemas causados pela ausência desta parte importante na formação educacional e cultural dos nossos alunos. Será possível entender as múltiplas e subjetivas dimensões do “lá” e do “cá”, na famosa “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias, escrita quando este se encontrava em Portugal? Será possível, realmente, entender as dicotomias e as diferenças entre os elementos que compõem os dois espaços, sem ter uma bagagem capaz de dar conta destas particularidades? A este respeito, relembro, aqui, a importantíssima obra de Wilton José Marques (professor e pesquisador da UFSCar), Gonçalves Dias, o poeta na contramão (2010), galardoada com ao Prêmio Jabuti, onde o autor aponta de maneira cuidadosa e atenta o contexto cultural brasileiro do século XIX. Na sua pesquisa, ele destaca que o caráter de missão dos periódicos brasileiros da nação recém independente não era exatamente apagar e rasurar de forma radical as marcas deixadas pelos colonizadores da pátria europeia. Ao contrário, pois, segundo ele, “na realidade prática, civilizar o Brasil significava elevá-lo a um patamar cultural de maior igualdade com as nações ocidentais, sobretudo à então pragmática nação francesa” (MARQUES, 2010, p. 74). Mas, isto também não isentava os intelectuais de uma preocupação vigente: se, por um lado, era preciso sintonizar as idéias locais com outras das nações ocidentais, por outro, como bem pontua Wilton Marques, “era preciso também criar alguns mecanismos simbólicos de diferenciação em relação a esses mesmos valores e crenças, configurando dessa forma uma noção de brasilidade” (Ibidem; grifos meus).
Ora, não me consta que para estabelecer uma diferença, seja possível partir de um único paradigma, anulando qualquer tipo de relação com outros valores e crenças. E, talvez, esta seja a grande marca e riqueza da brasilidade: a constatação e a convivência das diferenças. Tal aspecto dialogante também fora observado por Alexandre Herculano, escritor português do século XIX, quando de sua crítica à obra poética de Gonçalves Dias. Recorro, novamente, ao ensaio incontornável de Wilton Marques (que considero de leitura obrigatória, em virtude da clareza das explicações e dos argumentos levantados), quando, depois de citar as considerações do autor de Eurico, o presbítero sobre os Primeiros cantos, sublinha que “as palavras sinceras de Alexandre Herculano foram fundamentais tanto para a afirmação do projeto poético gonçalvino quanto para a própria consagração de Gonçalves Dias” (Ibidem, p. 118).
Ou seja, desde os tempos oitocentistas, quando a intelectualidade brasileira pensava a sua autonomia em relação ao domínio europeu, o diálogo e a troca não estavam descartados, muito pelo contrário, eles constituíam um dado necessário para se consolidar exatamente aquela “diferenciação” em relação a determinados modelos já vigentes.
Se retirarmos a literatura portuguesa da formação dos nossos jovens estudantes, como, então, entender a dimensão poética destes versos de Gonçalves Dias e dos atuais de um Caetano Veloso, por exemplo? “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar a criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade” (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44738).
Como roçar uma língua na outra sem que seja dada a possibilidade do conhecimento e da aproximação direta entre elas? Ou, ainda, como ouvir uma canção, como a conhecida “Amor, I love you”, sem ter em mente os meandros de O primo Basílio, de Eça de Queirós? Ou ler e cantar os versos de um Renato Russo, em “Monte Castelo”, sem entender o contexto em que o famoso soneto de Camões foi produzido? Será possível ler os poemas “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, ou “A máquina do mundo repensada”, de Haroldo de Campos, sem ler e conhecer Os Lusíadas, de Camões? Onde ficaria a possibilidade do diálogo e do estabelecimento de aproximações e afastamentos entre os poetas? Como abordar aspectos da modernidade literária (seja ela brasileira, seja ela de qualquer origem) sem citar o fenômeno da heteronímia pessoana?
Enfim, são perguntas que precisam ser feitas e refletidas por todos aqueles envolvidos na área da Educação. Daí que, na minha livre opinião, cogitar apagar as marcas deixadas por um passado cultural pode ser entendido como um gesto arbitrário e de pura natureza político-partidária. Acredito que, passados mais de 500 anos de descoberta do Brasil e quase 200 anos de sua independência, aquela fase de subserviência já está mais do que superada. Também não estou, aqui, assumindo uma defesa arbitrária de, simplesmente, esquecer todo o processo de violência e posse forçada que os colonizadores impuseram sobre os territórios conquistados. Aliás, sobre isso, a voz de Darcy Ribeiro é um caso exemplar de apontamento sobre tais incidências nas terras brasileiras.
Mas, também, não se pode pensar que passar uma borracha sobre uma herança deixada pelos portugueses, e que usamos para nos comunicar com os outros mais próximos e para estabelecer redes dialogantes além fronteiras, pode representar exclusivamente a nossa identidade.
Será que estaremos destinados a ficar como certas esculturas e obras arquitetônicas em algumas cidades históricas e capitais brasileiras? Ficaremos, como elas, largados e cheios de poeira, marcados por um esquecimento sumário? Seria isso um gesto de franca autonomia hipermoderna e pós-colonial? Duvido muito. E peço auxílio, aqui, ao escritor angolano Manuel Rui Monteiro, autor de obras importantíssimas para a consolidação do sistema literário do seu pais, artista engajado nos caminhos libertários de sua nação, quando, em “Eu e o outro – O invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto”, afirma:
Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral. E só era texto não apenas pela fala mas porque havia árvores, parrelas sobre o crepitar de braços da floresta. E era texto porque havia gesto. Texto porque havia dança. Texto porque havia ritual. Texto falado ouvido visto. É certo que podias ter pedido para ouvir e ver as estórias que os mais velhos contavam quando chegaste! Mas não! Preferiste disparar os canhões.
A partir daí comecei a pensar que tu não eras tu, mas outro, por me parecer difícil aceitar que da tua identidade fazia parte esse projeto de chegar e bombardear o meu texto. Mais tarde viria a constatar que detinhas mais outra arma poderosa além do canhão: a escrita. E que também sistematicamente no texto que fazias escrito inventavas destruir o meu texto ouvido e visto. Eu sou eu e a minha identidade nunca a havia pensado integrando a destruição do que não me pertence.
Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar não contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identificando-me sempre eu, até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho, em vez de seres o outro (MONTEIRO, 2008, p. 27)
Ao recuperar o processo da colonização portuguesa nos espaços angolanos, o autor é enfático e direto ao sublinhar todo o processo de apropriação violenta da terra, dos seus habitantes e de imposição da língua. No entanto, a resposta dada por ele não se direciona para uma rasura ou um apagamento daquilo que não lhe pertence como forma de construir e entender o seu projeto identitário. É preciso, sim, ter uma consciência plena dos caminhos históricos, culturais, políticos e sociais de formação do indivíduo e de sua coletividade, com todas as suas nuances e os seus detalhes, mas também não se pode cair em destruições radicalizadoras como caminho ou solução para um confronto e um posicionamento direto sobre o tema.
É claro que a obra citada de Manuel Rui encontra-se contextualizada num tempo histórico e político bem distinto do nosso, e que as suas especificidades ideológicas e locais são outras em relação ao que aqui se discute. No entanto, é assaz interessante observar que, no mesmo texto, Manuel Rui, em diálogo com Caetano Veloso, parece deixar a sua língua roçar a língua de Camões e propõe um diálogo, uma fricção mesmo, entre as duas, sem perder de vista a importância que elas têm na sua formação identitária, enquanto indivíduo angolano:
Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já comporta? Isso não. No texto oral já disse: não toco e não o deixo minar pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro. Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro, desescrevo para que conquiste a partir do instrumento de escrita um texto escrito meu, da minha identidade. Os personagens do meu texto têm de se movimentar como no outro texto inicial. Têm de cantar. Dançar. Em suma temos de ser nós. ‘Nós mesmos’. Assim reforço a identidade com a literatura (Ibidem, p. 28).
Não me parece isto um gesto de submissão, mas sim de subversão e de insubmissão a uma imposição (e me desculpem pelo ecos…). Por isso, a resistência, naquele sentido defendido por Alfredo Bosi (2000), apresenta-se como um instrumento eficaz do indivíduo (e, é claro, do artista) mostrar os meios por ele utilizados para se compreender como sujeito, munido de uma autonomia e de uma liberdade criadoras. Acredito que a lição deixada pelo escritor angolano pode bem nos auxiliar a entender a possibilidade de convívio, de troca e de roçamento entre as línguas, sem apagar as diferenças que nos distingue.
E se a questão de toda esta iniciativa de limar a literatura portuguesa incide sobre uma emergência em modernizar determinadas linhas e orientações pedagógicas, estabelecendo, assim, uma pretensa sintonia com as principais redes educacionais dos países mais desenvolvidos – e, diga-se de passagem, onde a educação é a prioridade número um –, basta então, olhar para alguns exemplos sintomáticos. Não me consta que, nas escolas e nas universidades americanas, o teatro de Shakespeare seja esquecido porque os EUA foram dominados pela Inglaterra. Esta última, por sua vez, também não apagou a relevância de um Edgar Allan Poe, simplesmente porque suas obras encontram-se inseridas nos sistemas cultural e literário das terras da ex-colônia britânica. Também em escolas e universidades da América Latina, o Don Quixote não desapareceu ou foi deixado de lado porque a língua do autor relembra os tempos sombrios de dominação espanhola (e, alguém duvidará dos processos violentos de ocupação nos territórios latino-americanos?). E, nas mais diferentes regiões do país ibérico, o argentino Jorge Luis Borges, com seus contos híbridos e ensaísticos, aparece roçando a sua língua com a de Cervantes.
Já aqui, para aqueles que ainda não perceberam, não estou me colocando em defesa de expurgar um passado marcado pela ocupação violenta, ou colocar panos quentes sobre o modo como os índios e os negros foram tratados no processo de colonização. Não há o que se questionar sobre tal assunto já que a História do Brasil oferece visíveis indícios para confirmar tais ocorrências. E, por outro lado, ninguém pode questionar a herança cultural e a presença efetiva destes dois grupos na formação da cultura brasileira. A própria história atual tem mostrado caminhos de reescrita e reinscrição desses importantíssimos agentes culturais dentro da nossa sociedade, com projetos de Ações Afirmativas efetivas e relevantes.
Mas, também, não se pode detonar e destruir deliberadamente uma parte importante de nossa história, ou seja, a terceira parte daquele tripé étnico-cultural que nos alicerça, impedindo, inclusive, que os alunos desenvolvam uma consciência crítica sobre os diálogos possíveis entre os universos literários e culturais de língua portuguesa. É bom lembrar, aqui, que muitos dos nossos professores de literaturas africanas não surgiram simplesmente do nada. E peço licença para citar alguns exemplos: a Profa. Dra. Laura Cavalcante Padilha, Professora Emérita da UFF, Doutora em Letras Vernáculas pela UFRJ, com uma Tese premiada sobre a presença da ancestralidade na literatura angolana. É preciso lembrar que a pesquisadora brasileira veio da área de Literatura Portuguesa, com uma belíssima Dissertação de Mestrado sobre o romance A ilustre casa de Ramires, de Eça de Queirós. Também a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes (USP), um dos nomes mais respeitados sobre a literatura de Cabo Verde, autora de um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no mundo, vem da área de Literatura Portuguesa (com uma Tese sobre a poesia de Gastão Cruz), onde continua atuando em franco diálogo com as outras literaturas lusófonas. Mesmo caso do Prof. Dr. Mário César Lugarinho (USP), que, durante anos, vem trabalhando na área dos Estudos Comparados das Literaturas de Língua Portuguesa. Também ele tem o seu Doutorado sobre um poeta da Literatura Portuguesa (Manuel Alegre), compreendendo-a sempre numa rede de caminhos de mão dupla com outros sistemas literários com uma língua comum. E, por fim, a Profa. Dra. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, oriunda da Literatura Brasileira, que, em 1993, criou o setor de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na UFRJ, e, desde então, vem desenvolvendo toda uma investigação comparativa entre os distintos mundos literários de língua portuguesa.
Concluo, deixando uma afirmação pessoal e categórica. Sou professor de literatura portuguesa e de literaturas africanas de língua portuguesa, e tenho muito orgulho de minha profissão. Cheguei a estas, graças aos meus professores de literatura portuguesa, porque, sem eles, com certeza, não teria ouvido falar de um Luandino Vieira, de um Manuel Rui, de um Corsino Fortes, de um Mia Couto, e de tantos outros escritores africanos que hoje habitam o nosso imaginário. Hoje, meu desejo é o de que muitos outros profissionais apareçam com a mesma paixão pela disciplina e pela língua que nos une, nos aproxima e nos diferencia. Afinal, será possível, em pleno século XXI, realmente, pensar uma identidade baseada num processo de apagamento, silenciamento e esquecimento?
Em virtude da ameaça iminente da eliminação sumária de uma parte de nossa memória cultural, recorri a um inquérito, direcionado a escritores, professores, investigadores e profissionais do Brasil e de Portugal, envolvidos com o ensino e a pesquisa não apenas em literatura portuguesa, mas, também em literaturas africanas de língua portuguesa e literatura brasileira. Como este texto foi escrito parcialmente antes e concluído depois da coleta dos dados, faço a transcrição das duas perguntas e aponto as respectivas respostas, no entanto, isento os seus autores de qualquer ligação com as argumentações aqui expostas. Elas são minhas e, como bem lembra o nome do site, constituem uma “Livre opinião” sobre uma idéia que precisa ser franca e abertamente debatida, sem excluir deliberadamente os profissionais da educação. Da mesma forma, as respostas transcritas transmitem as opiniões dos seus autores que, em algum momento, ora acabaram convergindo, ora construíram uma dissonância (ainda que relativa) com o que aqui foi tecido.
Foram as seguintes perguntas propostas aos entrevistados
1) Está circulando, atualmente, no Brasil, uma nova diretriz da educação que retira a obrigatoriedade da literatura portuguesa do ensino básico e médio. Como escritor/professor/profissional da educação, o que pensa sobre esta nova medida?
2) Na sua perspectiva, qual a relevância do ensino da literatura portuguesa para as diferentes esferas do ensino, ainda que a maneira de condução da disciplina tenha de passar por uma série de adaptações para poder atingir as diferentes faixas etárias dos alunos?
Seguem as respostas e os seus respectivos autores
- Albano Martins (Poeta, ensaísta, tradutor e professor. Grande Prémio de Tradução Literária da APT, 1999 e 2012):
1) Penso que é um acto de miopia, sustentado por uma visão retrógrada que atraiçoa o passado (mas também atraiçoa o presente e o futuro) e promove a pedagogia da desconfiança, do recalcamento e do melindre. A história literária do Brasil é compósita. Varrer do currículo do ensino básico e médio o ensino da literatura portuguesa é cercear as raízes da literatura brasileira e varrer, entre outros, os nomes do Pe. António Vieira e do poeta Tomás António Gonzaga, que pertencem, em rigor, a ambas as literaturas. Uma árvore não é apenas o seu tronco e os seus ramos, é também – é, dir-se-ia, principalmente – as suas raízes. E são estas que lhe dão a seiva.
2) Antes de mais, a literatura portuguesa, assente na língua comum, fornece modelos (literários, linguísticos, estilísticos, estéticos…), isto é, configura-se como exemplo. Ao professor cabe, naturalmente, a selecção e o tratamento dos aspectos adaptados às “diferentes faixas etárias dos alunos”, na certeza de que língua e literatura caminham a par e constituem elementos essenciais à formação da personalidade dos alunos.
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- Almeida Faria (Escritor e professor. Prémio Vergílio Ferreira, 2000).
1) É um atentado aos vários países que têm a sorte de falar a mesma língua. E é uma diretriz populista, demagógica, obscurantista.
2) A relevância de ensinar desde cedo literatura portuguesa é levar os alunos a ler textos que de outro modo nunca viriam a conhecer.
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- Ariadne Valentim Marques (Professora da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro).
1) Como tudo o mais que diz respeito à construção do saber, à educação e ao patrimônio cultural desse país é relegado a segundo plano, não é de se espantar que tal medida já esteja circulando como ponto da BNCC. É lamentável que esta já esteja sendo avaliada, prova que, como em demais áreas de conhecimento, o estudo literário seja considerado de tão pouca importância. É notório que o estudo de literaturas seja depreciado e desvalorizado em nossos currículos mais básicos, pensando a respeito da própria literatura brasileira. O nosso aluno hoje não conhece, nunca ouviu falar, nem tem noção de que há um acervo enorme de autores portugueses (e suas obras) a ser conhecido, apresentado e revelado. O vislumbre em mergulhar em tais águas, realmente, parece não ser de interesse dessa “pátria educadora”, que, cada vez mais, parece se dirigir ao caminho da ausência da memória histórica e cultural.
2) O ensino de literatura portuguesa, mesmo em classes iniciais, como é o caso em que eu efetivamente trabalho, oferece a possibilidade de resgate do conhecimento histórico, também. Nossas origens, os traços do cotidiano em suas narrativas, nossas similitudes e diferenças, tudo, enfim, que foi trazido das terras d’além mar. Toda esta bagagem constitui uma experiência riquíssima!
Certamente, a presença desses autores em disciplinas das classes iniciais teria que passar por etapas de adaptação e adequação às diferentes faixas etárias, seriação, grupos e localidades específicas, mas nunca deixar de ser oferecida.
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- Dr. Fábio Ackelrud Durão (Professor Livre Docente do Departamento de Teoria Literária da UNICAMP. Crítico literário e ensaísta. Presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística / ANPOLL / 2014-2016).
1) Posso responder a essa pergunta como crítico. A literatura portuguesa tem um caráter especial no Brasil. Assim como as africanas lusófonas, ela é capaz de veicular uma mistura de proximidade e diferença que é rica para o conhecimento e para a experiência. O idioma nos aproxima e as realidades nacionais diversas nos diferenciam. Essa combinação de familiaridade com distância permite que nós, brasileiros, obtenhamos uma perspectiva na qual podemos nos ver como outros. Eliminar a literatura portuguesa significa confinar os brasileiros dentro si, nos empobrecendo e emburrecendo – justamente num momento em que a intolerância e o obscurantismo, por definição cegos à alteridade, parecem estar batendo à porta.
Há ainda um segundo argumento importante a ser mencionado. Abolir a literatura portuguesa da escola estreitará o horizonte histórico do aluno. A literatura brasileira começa no século XVI, mas só se firma como tal no XIX; a portuguesa era a via de acesso para o aluno brasileiro à literatura da Idade Média e do renascimento. Repito o que disse acima: excluí-la da escola contribui para que nos aprisionemos em nós mesmos.
2) A resposta já ficou indicada acima. A literatura portuguesa pode abrir a cabeça dos brasileiros, mostrando que a sua identidade é bem mais complexa do que parece à primeira vista. Isso é algo que pode ser desenvolvido com diferentes graus de profundidade em todos os níveis do ensino.
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- Dra. Gilda da Conceição Santos (Professora Aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vice-Presidente do Real Gabinete Português de Leitura. Coordenadora do Pólo de Pesquisas Luso-Brasileiras).
1) Com obrigatoriedade ou sem ela, eliminar referências à literatura portuguesa da sala de aula é lesar os alunos, é privá-los de conhecimentos que lhes permitem compreender melhor muitas questões culturais embutidas na língua que falam. Um professor consciente não cometeria essa falta.
2) É no Brasil que temos o único e muito elogiado “Museu da Língua Portuguesa”, que atrai enorme público estudantil e no qual a literatura portuguesa vem sendo amplamente contemplada, sem provocar qualquer dificuldade ou estranhamento nos jovens visitantes. Exemplo de que não faltam meios de adequar as informações ao público-alvo. Um professor consciente e bem informado saberá transpor conteúdos selecionados para os níveis das turmas que tiver a seu cargo.
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- Dra. Ida M. S. Ferreira Alves (Professora Associada da Universidade Federal Fluminense. Diretora do Instituto de Letras da UFF. Coordenadora Adjunta de Letras e Linguística / CAPES / 2014-2015).
1) A bem da verdade, ainda não há “uma nova diretriz”, e sim a preparação de nova Base Curricular Nacional, em avaliação pública até 15 de março. Nessa Base, constata-se que o estudo de literatura referencia literatura brasileira, indígena e africana, apagando completamente qualquer referência à literatura portuguesa. Na Base, fala-se de “outras literaturas”, mas é um desacerto tornar anônima a literatura portuguesa, a qual é, inegavelmente, uma das literaturas de língua portuguesa. Todos nós, atentos a essa questão, estamos nos expressando contra a possibilidade de apagamento da literatura portuguesa no currículo básico e médio, ou mesmo no ensino superior, porque estudar as literaturas de língua portuguesa é estudar necessariamente a literatura brasileira, portuguesa, angolana, moçambicana, cabo-verdiana, de Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe, para além da literatura indígena, memória de uma outra face do Brasil. O estudo literário deve estar preocupado com a formulação de trajetos culturais, com o estabelecimento de diálogos entre povos que falam a língua portuguesa, partilhando determinados imaginários. Silenciar qualquer uma delas é amputar parte de nossa cultura de língua portuguesa. Não podemos deixar que isso ocorra, porque não podemos ser coniventes com uma visão parcial do que seja a cultura que nos dá um rosto. A literatura portuguesa é tão nossa quanto a literatura brasileira e as africanas de língua portuguesa. Seus poetas, romancistas, dramaturgos são também nossos escritores e, em português, todos eles se expressam e conversam conosco sobre pensar, questionar, sentir e sonhar.
2) A relevância é pôr em movimento esta nossa múltipla cultura de língua portuguesa. Estudar a literatura portuguesa nas diferentes esferas do ensino é compreender determinados trajetos de nosso imaginário, antes mesmo que o Brasil existisse como nação oficial. Essa literatura foi e é tão nossa como a brasileira e as demais africanas de língua portuguesa devem ser de Portugal. Não podemos trabalhar com ideias nacionalistas, com preconceitos anacrônicos, com empobrecimento cultural. Possibilitar às crianças e aos jovens a abertura do seu campo de imaginação em português é aumentar seu conhecimento de mundo, é fomentar a importância da partilha, da solidariedade com o outro que é diferente de nós mas pertence também a um comum patrimônio cultural. A literatura é necessidade para todos, pois é arte, é criação, é conhecimento. Com a ARTE, sua experiência, o homem pode se tornar melhor, por isso, desde o maternal, a criança deve ser cercada de histórias, de versos, de imaginário. Isso desenvolve percepção, linguagem, raciocínio, coordenação e inteligência afetiva. Estudar as literaturas de língua portuguesa, conhecê-las, compreendê-las, é possibilitar ao nosso alunado uma abertura cultural inestimável, além da compreensão mais amadurecida do que somos, brasileiros, falantes de língua portuguesa. Não se discute que métodos de ensino possam ser modificados para que os conteúdos sejam, de forma mais inteligente, absorvidos pelo alunado. O que se discute é que negar o ensino de literatura ou, mais precisamente, silenciar a literatura portuguesa no contexto das literaturas de língua portuguesa, é empobrecer nosso aluno, é negar-lhe a possibilidade de compreender outras realidades em confronto com a nossa, encontrando pontos de afastamento e de aproximação. Todos nós, brasileiros, portugueses e africanos de língua portuguesa, apesar das diferenças pontuais de léxico e fonética, nos entendemos em português e poder partilhar histórias, personagens, poemas juntos é fortalecer nossa formação cultural, nossa habilidade de linguagem, nossa capacidade de criar mundos outros em nosso próprio mundo. Além disso é formar o cidadão politicamente, compreendendo o valor que a língua portuguesa tem no mundo.
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- Dra. Isabel Pires de Lima (Professora Titular / Emérita da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Ex-Ministra da Cultura de Portugal).
1) Não sou professora de literatura portuguesa no Brasil, mas em Portugal. Será, portanto, a partir do meu olhar de europeia e portuguesa que darei a minha opinião. Acho que essa diretriz decorre antes de mais de uma estratégia político-económica e de um preconceito pós-colonial que pretende privilegiar o diálogo sul-sul em detrimento do diálogo norte-sul entre os países que livremente construíram a plataforma da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Complementarmente visa afastar a literatura portuguesa definitivamente para o terreno de literatura liminarmente estrangeira, ignorando que ela se escreve na mesma língua que a brasileira e, sobretudo, que uma e outra se confundiram entre si num certo lapso histórico a partir do qual a literatura brasileira se autonomizou. Como será então possível, por exemplo, estudar o romantismo brasileiro sem o diálogo com o romantismo europeu, através da intermediação em língua portuguesa do romantismo português?
A diretriz deveria ir em sentido absolutamente oposto: para além de dever continuar a integrar obrigatoriamente a literatura portuguesa, a BNCC deveria integrar textos literários de todas as literaturas em língua portuguesa. Parece-me até que poderia ser útil os países da CPLP entenderem-se na definição de um cânone literário escolar em língua portuguesa, estabelecido por cada um deles ao serviço de todos.
Por último, não entendo como uma cultura que fala em língua portuguesa, como a brasileira, pode permitir-se ignorar, por exemplo, a genial realização artística da modernidade e do século XX, levada a cabo por Fernando Pessoa na nossa língua comum. O que pensaríamos se os estudantes dos EUA ignorassem Shakespeare ou os dos países ibero-americanos de língua espanhola desconhecessem Cervantes? Certamente ficariam a perder.
2) Não me pronunciarei sobre a segunda parte da questão que implica um conhecimento do terreno pedagógico brasileiro que não tenho. No entanto, é preciso sublinhar que a matriz cultural do Brasil, nascida de um processo de colonização levado a cabo pelos portugueses, é preponderantemente ocidental, a qual esmagou, antes e depois da independência, as culturas indígenas e incorporou, reprimindo-as, as culturas africanas que os escravos transportaram. Este facto, que pertence a um passado histórico encerrado, não pode ser modificado, mas também (e é importante sempre frisar) não pode ser ignorado pelo Brasil, sob pena de lhe ser improvável autodefinir-se do ponto de vista identitário em plena posse de si e das circunstâncias que lhe couberam. É exatamente por isso que a literatura portuguesa, a única literatura europeia em língua portuguesa, a par das outras escritas em português, é seminal para a história, a sociologia, a etnografia e a antropologia brasileiras. Onde ficará a “Carta do Achamento do Brasil”, esse maravilhoso texto que escreve Brasil em língua portuguesa?
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- Dra. Laura Cavalcante Padilha (Professora Emérita de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal Fluminense. Crítica literária e ensaísta. Prêmio Mário de Andrade – Biblioteca Nacional, 1995).
1) Esta nova medida será profundamente prejudicial á formação histórico-cultural do aluno brasileiro, sobretudo porque cada vez mais se torna muito importante e necessário o fortalecimento de nossa relação com os outros países de Língua Oficial Portuguesa.
2) Concordo que haja uma adaptação, pois, em meu modo de ver, esse conhecimento deveria ser iniciado no segundo segmento do Ensino Fundamental, e poderia ser desenvolvido nas áreas do ensino de História e de Língua Portuguesa. Claro está que o processo deverá ser conduzido de modo consistente pelos educadores que, nesse momento, se dedicam à formulação de uma nova Base Nacional Comum Curricular, pois é necessário que tal base contribua para a plena formação do futuro cidadão brasileiro. Retirar um conhecimento que contribua para tal formação me parece altamente prejudicial.
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- Dra. Maria Lúcia Dal Farra (Professora Titular da Universidade Federal do Sergipe. Consultora Ad Hoc do CNPq. Ensaísta e poetisa. Prêmio Jabuti, 2015).
1) É uma calamidade! Estão retirando tudo o que nos diz respeito, a pouco a pouco, num trabalho aplicadíssimo, miúdo e surdo de desintegração do nosso patrimônio cultural, que vai minando a nossa memória coletiva e nacional. Querem nos reinventar, fazendo-nos emergir de outras culturas e de uma outra História. Tudo muito deplorável, sobretudo porque não passa de uma farsa! E eu quero poder escolher não partilhar dessa outra identidade que estão me forçando a vestir.
2) A Literatura Portuguesa assim como as Literaturas Africanas de expressão portuguesa são nossas interlocutoras. Não se trata de aceitar passivamente uma origem linguística ou literária, mas de poder conversar com um outro que não nós – e isso faz muita falta para que possamos saber sempre, e a cada minuto, quem somos e quem vamos ficando, na medida em que podemos nos ver diferentes. Sem esse espelho turvo, desigual e irregular não podemos nos enxergar com propriedade e nem engendrar, através da mesma língua, aquilo que nos faz únicos.
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- Dra. Patrícia Cardoso (Professora Associada da Universidade Federal do Paraná. Presidente da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa / ABRAPLIP).
1) A proposta da Base Nacional Comum Curricular manifesta, de maneira enfática, persistente, a preocupação com o desenvolvimento de um conhecimento que não se construa a partir de compartimentos estanques, de modo a promover-se no ambiente escolar a percepção do caráter multifacetado, interativo do mundo em que o aluno vive e para o qual a escola o prepara. Tal preocupação sintetiza-se em passagens do texto da proposta em que se leem afirmações como “a vida em sociedade requer que os sujeitos se apropriem dos sistemas de representação e de repertórios historicamente construídos.”
Entretanto, à medida que a leitura da proposta avança, observa-se um descompasso entre tal preocupação e aquilo que efetivamente se propõe como prática escolar, pois a consciência a respeito do caráter histórico das representações, das quais o sujeito deverá apropriar-se para, como tal, viver em sociedade, vai dando lugar a um interesse voltado marcadamente para o contexto contemporâneo e suas questões
Assim é que toda a atenção do currículo volta-se para certos elementos contemporaneamente valorizados como essenciais para aquela “participação cidadã”, esquecendo-se de que tal valorização é, também ela, um “repertório historicamente construído”. Aquilo que se destaca como questões essenciais na contemporaneidade – como “ambiente”, “sustentabilidade”, “tecnologia” – que se acredita ser absolutamente imprescindível discutir com as crianças e jovens em formação, talvez pouco ou nada signifique em um futuro próximo. É preciso, então, antes de mais nada, ajudá-los a compreender como chegamos a tais valores, quais as bases do tal “repertório historicamente construído”. Não se trata, portanto, de minimizar a importância de tais questões, mas de inscrevê-las num movimento projetivo-retrospectivo, em que o olhar não se restrinja à contemplação do que se apresenta imediatamente à vista, mas abarque o que, apesar da distância temporal, mantém-se como parte fundante da experiência vivida no presente.
Na ânsia de atender às urgências dos discursos contemporâneos, assume-se que o currículo contemplará não a grande base das culturas e literaturas envolvidas na consolidação da multifacetada identidade brasileira, mas apenas a parcela que, de acordo com o discurso em voga, pautado na oposição colonizadores/colonizados, merece, por uma questão de compensação histórica, ser deslocado para o centro da cena. Isso explica que desde o 1º ano do ensino fundamental o foco da proposta seja “ler e apreciar textos literários tradicionais, da cultura popular, afro-brasileira, africana, indígena e de outros povos”, sem qualquer referência à literatura portuguesa, ainda que se fale em “textos literários tradicionais, da cultura popular”. Diante de uma descrição como essa, torna-se difícil compreender o que se está chamando de tradicional, a que corresponde a cultura popular nesse contexto – levando-se em conta o grau de penetração da cultura portuguesa como um todo na história da sociedade e, especificamente, da cultura popular brasileira –, dificuldade que apenas se intensifica quando se pensa na insistência com que se afirma, na proposta, o comprometimento com a “diversidade cultural e linguística”.
2) Quando se fala a sério em “identidades” e “interculturalidades”, em “culturas” (atente-se para o termo no plural, usado na proposta do MEC) não se pode, a sério, ignorar os processos históricos que as moldam, a partir das quais elas se constroem, ininterruptamente, a despeito do modo como se qualifique a participação deste ou daquele agente. Apagar a participação da cultura e da literatura portuguesas no processo de formação do Brasil não é a melhor forma de valorizar as culturas dos povos submetidos pelo colonizador é, sim, uma mutilação do passado, sua terrível sonegação às gerações contemporâneas, como argutamente observou Sérgio Buarque em Raízes do Brasil. Nesse sentido, limitar o foco no presente, ou naquilo que se reconhece como os valores positivos engendrados pelo presente, responsável pelo estabelecimento do vínculo entre os “conhecimentos” e a “participação cidadã”, é na verdade uma maneira de embotar o aluno, impedindo-o de ver o mundo numa perspectiva efetivamente complexa. Voluntariamente ignorar a incontornável importância de Portugal, de sua cultura, para o que é o Brasil – porque aquele país foi o colonizador desprezível, que a todo custo deve ser expurgado de nosso convívio? – revela um parcialismo suspeito e questionável da proposta, justamente em seus pontos mais caros, aqueles relacionados ao reconhecimento da “literatura como lugar de encontro de multiculturalidades”.
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- Dra. Simone Caputo Gomes (Professora de Literaturas Africanas da FFLCH/USP. Condecorada com a Medalha do Vulcão / Primeira Classe, pelo Presidente da República de Cabo Verde. Membro Honorário da Academia Cabo-Verdiana de Letras. Consultora em Lìngua Portuguesa, Literatura e Redação para o Ministério da Educação e Cultura/INEP).
1) A Base Nacional Comum Curricular parece-me conter vários equívocos e ausências que, de certa forma, denotam escolhas ideológicas no seu bojo. Na área em que atuo, Letras (Literaturas de Língua Portuguesa), que corresponde à de Linguagens na BNCC, no que toca especificamente ao campo de atuação “Práticas artístico-literárias” e aos objetivos 3. Aprendizados de leitura; 4. Aprendizados de Literatura; e 6. Análise de textos, o foco recai maciçamente na Literatura Brasileira, numa perspectiva de nacionalização das bases curriculares.
Se por um lado obriga a conhecer melhor a série literária brasileira e o contexto nacional, este recorte elide as relações saudáveis e consistentes de nossa Literatura com o panorama universal, incapacita para leituras intertextuais importantes e para relações transcontextuais necessárias que o texto literário favorece por parte do receptor.
Objetivos do ensino médio, como LILP1MOA235 (Reconhecer, em produções literárias de autores da Literatura Brasileira, o diálogo com questões contemporâneas (principalmente do jovem), em uma perspectiva de leitura comparativa entre o local e o global, reconhecendo a Literatura como uma forma de conhecimento de si e do mundo), e LILP1MOA236 (Interpretar e analisar obras africanas de língua portuguesa, bem como a literatura indígena, reconhecendo a literatura como lugar de encontro de multiculturalidades) parecem-me extremamente prejudicados no campo da atuação prática se a leitura comparativa não leva em conta a comparação entre textos literários |
de língua portuguesa, por exemplo, com base no fenômeno colonial e em leituras pós-coloniais, tendo em mente também que o objetivo236 recorta obras africanas de língua portuguesa. Como explicar a independência literária dessas culturas se não se tiver em mente textos coloniais (portugueses, portanto). |
Elidir a Literatura Portuguesa nas discussões é desconhecer uma parte importante do patrimônio que deu suporte ao nascimento e consolidação das Literaturas Brasileira e Africanas de língua portuguesa.
Quanto ao objetivo LILP1MOA239 (Identificar os recursos sonoros e rítmicos (rimas, aliterações, assonâncias, repetições), bem como elementos gráfico-visuais, reconhecendo os efeitos de sentido que esses recursos podem envolver em práticas de leitura e oralização do texto poético), como esquecer o histórico do verso redondilho, vindo de Portugal e estruturante da medida velha dos textos camonianos, fundamental para a sonoridade e ritmo, inclusive, da música carnavalesca brasileira, além da poesia popular?
Esta visão parcialista da BNCC me incomoda. E nada contribui para o entendimento de nossa brasileira multiculturalidade textual.
Outro ponto e talvez decisivo para que se tenha elidido o estudo de manifestações da Literatura Portuguesa: a ênfase dada, no tratamento da Literatura, ao ponto de vista contemporâneo, fundamentado (sem que isso tenha sido explicado) certamente por um carpe diem (presenteísmo) sob o qual vive o jovem estudante na atualidade. Este recorte que inverte a cronologia falha, contudo, no silêncio que vota às práticas de representação das letras de língua portuguesa dos séculos XII ao XV, o que não contribui para que o jovem tenha uma noção de identidade com um patrimônio fundado numa história literária.
Outro obstáculo gritante é a falta de preparação dos professores, que não foram contemplados pelo estudo da Literatura Brasileira contemporânea nem das Literaturas Africanas em sua formação. Que escritores e obras devem ser contemplados? Há algum consenso mínimo sobre este ponto?
Vejo ainda uma falta de integração entre a área de Linguagens e a de Ciências Humanas, viés teórico privilegiado nos estudos literários hoje.
2) Sabedores de que negro, índio e branco (europeu, português) fazem parte de nossa origem multicultural, no que diz respeito ao discurso literário, a Literatura Portuguesa tem estado muito mais próxima do desenvolvimento da série literária brasileira (foco privilegiado da BNCC) do que as literaturas recentíssimas africanas de língua portuguesa e de uma ainda incipientemente recortada literatura indígena.
Assim, rasurar o ensino da Literatura Portuguesa chega às raias do absurdo. O viés ideológico do recorte parece-me evidente, optando por culturas que têm sido, de certa forma, “vitimizadas” pela sociedade brasileira ao longo de sua história.
Destacá-las e dar-lhe voz é premente, mas não à custa de olvidar obras, autores e formas portuguesas que têm sido marcos na formação e na diferenciação da literatura brasileira frente a outras literaturas.
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- Dra. Tânia Pellegrini (Professora Sênior de Literatura Brasileira do Departamento de Letras da UFSCar. Coordenadora do PPGLit/UFSCar/2011-2013. Pesquisadora Visitante das Universidades de Leiden, Holanda; Waikato, Nova Zelândia; Oxford, Inglaterra. Crítica literária e ensaísta).
1) Acredito que essa medida é extremamente danosa para a formação intelectual dos jovens brasileiros. Elimina aspectos históricos fundamentais da formação e da consolidação não só da língua portuguesa falada no Brasil, como da literatura brasileira, que se construiu tendo como parâmetros e modelos fundantes – queiramos ou não – a literatura portuguesa, bem como outras literaturas europeias. É necessário incluir literaturas africanas e indígenas, sim, sem excluir a portuguesa. Isso significaria uma amputação perigosa do processo histórico que no Brasil se efetivou, em termos sociais e culturais, equivalente ao apagamento até aqui instituído das ditas literaturas africanas e indígenas dos currículos escolares.
2) A condução da disciplina deve ser adaptada a cada grau de escolaridade e a cada região do Brasil, devido a sua flagrante desigualdade econômica, social e étnica. Isso porque a literatura portuguesa, juntamente com as africanas e indígenas, pode dar uma ideia da enorme complexidade do processo de formação de nossa história e sociedade, que se fez com base em terríveis tensões entre colonizadores e colonizados. Não se podem apagar da literatura brasileira aspectos fundamentais que englobam a de modo desigual, mas combinado, a predominância da literatura portuguesa e o apagamento progressivo e intencional das heranças africanas e indígenas. Desarticular esse “todo”, com predomínio de uma das partes – como se fez até aqui –, é propiciar uma formação incompleta e irreal e repetir o equívoco.
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Encerro, relembrando uma fala da Profa. Dra. Cleonice Bernardinelli, mestra maior da Literatura Portuguesa no Brasil. Na década de 1980, travando uma luta hercúlea contra uma tentativa de retirada da disciplina dos programas curriculares dos cursos de Letras, a professora defendia a permanência da Literatura Portuguesa tanto nos quadros do ensino superior quanto nos do ensino básico:
O que defendemos é a permanência da Literatura Portuguesa como elemento da formação histórica desta nacionalidade tão apregoada pelo Relator e como fonte para estudos filológicos e linguísticos, que ficam amputados na sua prática em uma vasta e significativa área da língua, aquela mesma em que não existíamos ou apenas começávamos a existir. […] Num momento em que se tenta reencontrar o pacto democrático neste País, seria de inestimável prejuízo histórico, econômico, político e social, concretizar as funestas propostas da Resolução no. 638/84, ainda mais funestas porque emanadas de um colegiado que é depositário da responsabilidade de “aconselhar” sobre os caminhos da cultura no Brasil (BERARDINELLI, 1988, p. 20).
Como se depreende da citação acima, a discussão não é nova, nem atual. Vem de longa data. Naquela época, a coerência e a prudência venceram. O meu desejo é o de que, agora, o mesmo ocorra. Por isso, se o leitor é simpático às questões aqui levantadas, se também concorda que esta amputação constitui um gesto arbitrário, anti-cultural, anti-democrático, imprudente e improcedente, fica o meu convite para participar da petição pública “Dizemos não para a retirada da obrigatoriedade da Literatura Portuguesa da Base Nacional Curricular Comum” (http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR88426). Assine e participe, a sua livre opinião nesta idéia em debate pode fazer a diferença.
Évora / São Carlos, 26 de março de 2016.
Referências bibliográficas
BERARDINELLI, Cleonice. “Discurso de Inauguração do SEPESP”. In: Boletim do SEPESP. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1988, vol. 2, p. 12-21.
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
GARCIA, Flora Bender e LOZANO, José Ruy. “Literatura Portuguesa naufraga no Brasil”. In: http://m.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734307-literatura-portuguesa-naufraga-no-brasil.shtml?cmpid=compfb.
MARQUES, Wilton José. Gonçalves Dias, o poeta na contramão. São Carlos: EdUFSCar, 2010.
MONTEIRO, Manuel Rui. “Eu e o Outro – O invasor ou em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto”. In: PADILHA, Laura Cavalcante & RIBEIRO, Maria Calafate (orgs.). Lendo Angola. Porto: Edições Afrontamento, 2008, p. 27-30.
VELOSO, Caetano. “Língua”. In: https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44738
Excluir Camões, Pessoa, Eça e outros mais é ferir o direito ao conhecimento. É demais!
Somos feitos de portugueses, negros e índios. Tudo isso é parte da nossa história. E Literatura é história e cultura.
Falta de cultura é coisa séria, mais ainda quando implementada por quem deveria incentivar a cultura.
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