Aline Bei: As coisas mudam

o gato era criança

tomava leite

não tinha mãe.

na Visita

eu usava calça de moletom pra gente brincar bastante.

aos domingos nos víamos, era bom entrar

na casa do tio

que abria Porta e a primeira coisa que eu via era o gato

branco ficando mais peludo a cada semana porque ele

estava crescendo rápido,

os animais são assim, meu pai contou.

meus tios

e meus pais

conversavam horas sobre o que eu não lembro.

meu primo pequeno dormia no berço bem

pequeno. eu cheirava sua testa e sentia leite. queria acorda-lo, quem sabe colocar o gato dentro do berço e ninar os 2, balançar forte os 2, como uma montanha russa sem descida, mas

esse plano

nunca dava certo porque meu primo

dormia como a morte.

eu passava a maior parte do domingo com o gato

no chão de carpete

a gente brincando só das coisas que ele queria e também de fazer carinho.

os olhos dele

pareciam furos que vazavam o Lago que ele tinha

dentro da cabeça,

um gato é feito de água

se for azul o seu olho, de mato se for verde,

de sol se for amarelo.

eu

sou feita de

terra.

chegava a hora do almoço,

a gente comia comida não bem feita da minha tia que tentava cozinhar bem, minha mãe ajudava mas a tia não tinha mesmo como, seu arroz

parecia um bolo duro. eu comia

de cara amarrada

olhando pro gato

que devorava ração no pote prata, muito melhor

a comida dele, eu trocaria mas minha mãe disse que:

 

-não pode.

 

meu primo acordava

depois do almoço.

minha tia dava leite pra ele no peito, o bico rosa

ficava espetado,

o meu

não era assim.

conferi no espelho da casa dos tios: não,

não era assim.

 

-baixa a blusa, menina.

 

quando chegava em casa à noite

eu levava 1 copo

de leite

pra cama.

minha mãe achava normal, me dava boa noite meu pai também. eu esperava

a casa

virar silêncio

pra jogar

o leite

no peito

e dar de mamar para as bonecas

carecas.

hoje em dia meus tios

e meus pais

nunca se falam. meus tios inclusive se separaram porque o tio traiu a tia com 1 puta sempre a mesma, a vó dizia que era

Amor, eu acredito. meu primo

se vejo na rua

não reconheço, não sei o que ele gosta de fazer, também na época de bebê eu não sabia, mas tenho certeza que ele

nunca mais vai caber num berço de novo, aquilo foi antes

e não volta.

o gato criança

morreu

de velhice

e eu

ainda jogo leite no peito

mas quem mama é 1 gato-homem

que adora brincar na cama

com comida.

alinebei

Confira os textos anteriores da escritora Aline Bei

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