Dez perguntas para Ignácio de Loyola Brandão nos seus 80 anos

Não sou eu que estou louco, é a cidade, esta gente. Quem sabe a empresa não é um grande hospício, onde todos se fingem empregados da Máquina? Mas também é pretensão minha querer ser o único normal. Posso estar louco também e esta é uma sensação desagradável. Fico flutuando, sem saber quem sou, sem me reacionar, sem me adaptar a uma realidade. No entanto, qual realidade desta minha cidade? Não reconheço mais nada e não aceito o que está aí. Deve haver outros como eu, procurando com saber. Como encontrá-los para me livrar desta angústia e solidão? Isto é solidão. Não entender o que se passa à sua volta. Querer, e não conseguir. Continuo indagando, sempre que possível. Às vezes, vejo uma cara nova, tento me aproximar. São desconfiados, têm medo de perder empregos.

– Trecho de O homem que procurava a Máquina, do livro Cadeiras Proibidas

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Ignácio de Loyola Brandão (Foto: Divulgação)

 

São 43 livros, de romances a crônicas – “Veja só. Quem mandou escrever tanto?” -, destacando ZERO (1975), considerado obra-prima na denúcnia às atrocidades do período da ditadura militar, além de inovar a estética da literatura nacional. Ignácio de Loyola Brandão completa em 2016, no dia 31 de julho, 80 anos de idade.

Homenagear um dos maiores nomes da literatura contemporânea, salientando sua vasta carreira: “Vamos em frente. Sinto-me emocionado, ainda que eu seja um homem feliz com minha idade. Bela época. Não queria mais ter 20 anos e ser um angustiado como era, solitário e sem saber o que fazer na vida”.

Além de ZERO, Loyola publicou Cadeiras proibidas (1976), Dentes ao Sol (1976), Não verás país nenhum (1981), A Altura e a Largura do Nada (2006). O Menino que Vendia Palavras ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção. Desde 2005 assina crônicas no Estado de S. Paulo e atualmente está em cartaz com o espetáculo Solidão no Fundo da Agulha, em que contracena com sua filha, a cantora e atriz Rita Gullo, todas as terças-feiras, no teatro Eva Herz.

Nesta homenagem aos 80 anos do autor, o Livre Opinião – Ideias em Debate convidou Lucimar Mutarelli, Humberto Werneck, Rejane C. Rocha, Aline Bei, Paulo Scott, Zema Ribeiro, André Sant’Anna, Xico Sá e Wladimir Cazé para participarem da comemoração elaborando perguntas sobre a vida e obra de Ignácio de Loyola Brandão.

★★★

Lucimar Mutarelli – escritora

PERGUNTA: Qual foi o tema mais difícil que abordou em sua literatura?

LOYOLA: Claro que foi ZERO. Colocar todo o clima violento da ditadura militar dentro de um livro foi barra pesada. Por isso levei nove anos para escrever o livro. Montar a atmosfera de medo, a dificuldade de viver e amar, a repressão, a tortura, a censura, as leis e decretos insólitos e surreais, a falta de liberdade, a clandestinidade, as prisões e desaparecimentos, a ausência de perspectivas. Tudo isso sem fazer panfletagem, sem querer colocar a arma nas mãos do leitor, apenas provocando para que ele sentisse indignação. A primeira versão tinha mais de duas mil páginas e vieram os cortes até atingir as 500 laudas do final, que impressas resultaram em 300 páginas.

Humberto Werneck – escritor

PERGUNTAS

1 – Há na sua obra algum livro, capítulo, parágrafo ou simples frase, em especial, a que a crítica, na sua opinião, não soube dar a devida importância? Qual?

LOYOLA: Há um livro, Werneck, que considero meu predileto e que passou despercebido, ignorado. É o Dentes Ao Sol. O clima surreal, o sufoco de uma cidade do interior, personagens e situações que apareceram em ZERO, mas vistas de outro ponto de vista. Nada disso foi notado. Também não se notou em ZERO que o cântico final é tirado do God Bless América, com profunda ironia. Quando lancei Veia Bailarina, um único leitor – e nenhum critico – percebeu uma curiosidade. Em ZERO, José, o personagem principal, revela que seu maior medo, pavor, era ter um aneurisma. Essa situação foi escrita no começo dos anos de 1970. Ora, em 1996 descubro que tenho um aneurisma na artéria cerebral direita e sofri uma cirurgia. O que o personagem temia, aconteceu com o autor.

2- Rebobinando tudo o que se escreveu sobre a sua prosa, você reconhece algum elogio imerecido ou descabido? Em caso positivo, qual, ou quais?

LOYOLA: Usando o modelo de Graciliano Ramos, que considerava exagerados os elogios e o pedestal em que o colocavam – chegou a dizer que Angústia e Caetés não eram romances, eram “duas borracheiras” (entrevista de Paulo e Medeiros e Albuquerque, em A Gazeta Magazine, 1941, citado em Graciliano Ramos-Conversas, Editora Record, 2014) -,  pergunto: será que são merecidos os elogios às minhas obras? Será que tenho uma obra? O livro que desejo ainda não escrevi. Agora, ao fazer 80 anos terei tempo? Mas me lembro de uma frase de uma resenha da Folha, quando lancei O Beijo Não Vem da Boca, em 1986. O autor, Luiz Aidar, ou coisa assim, identificado como especialista em paisagismo, aproveitando o nome do meu personagem Breno, disse que o romance era uma blenorragia, ou uma gonorreia. Porque um paisagista é convidado para escrever resenhas de livros.

Rejane C. Rocha – professora do departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

PERGUNTA: Em uma fala* na Universidade de Maryland, em 1988, você fez uma análise bastante complexa a respeito do cenário da literatura e da cultura em geral, durante os anos da ditadura militar. Na ocasião, o seu diagnóstico era o de que duas questões, não necessariamente relacionadas ao fazer literário em si, tinham que ser enfrentadas, inevitavelmente, pelos escritores: “Estou fazendo o que devo, do modo como deve ser feito”? e “O que estou fazendo chegará ao público?”. Passados quase 30 anos, você acredita que essas questões ainda se colocam ou outras, mais adequadas ao contexto atual, as teriam substituído? *(a fala intitulava-se Literatura e resistência e foi publicada, posteriormente, no livro Brasil: o trânsito da memória, organizado por Saúl Sosnowski e Jorge Schwartz).

LOYOLA: Rejane, a meu ver essas duas questões ainda são colocadas por qualquer ator que pense literatura como coisa séria, objetivo de vida e destinada a contar alguma coisa que envolva o brasileiro e o nosso país. Acho que por não respondê-la a contento, por não nos satisfazermos com o que fazemos é que continuamente escrevemos. Passados 30 anos, não temos mais a censura que nos aguilhoava, porém as condições de chegar ao público não mudaram muito. A escola piorou, foi um declínio fantástico e ainda procura uma maneira de fomentar o gosto pela leitura. Deste modo, não sabemos a que público nos dirigimos. Mas há algo de positivo hoje em dia. As jornadas, as bienais, as feiras, os festivais de livros e literatura, a Festas Literárias (FLIP, Paraty, RJ; FLIV, Votuporanga, SP: FLIPIRI, Pirenópolis, Goiás; SALIPI, Teresina, Piaui; Feira Pan Amazônica, Belém, Santarém Marabá e assim por diante). Segundo a Câmara Brasileira do Livro chegam a quase 200 [eventos literários]. Pequenas e grandes cidades que montam estandes, levam autores para discutir e conversar, para contar histórias. Pelo Brasil inteiro, o tempo todo, há escolas e faculdades levando escritores para debater, narrar. Em Goiás, no Acre, no Ceará, temos ido a escolas rurais, somos recebidos pelas mães dos alunos com café, bolos, cangica, pães de queijo, e as mães seguem as conversas, fazem perguntas. Há algo mudando, demanda tempo, sistema de ensino. Educação? Como? Se o ministro recebe um energumeno como Alexandre Frota que vai fazer “contribuições para currículos e censuras ideológicas”? Ora, ora!

Aline Bei – escritora

PERGUNTA:  O que todos os anos de escrita te acrescentam na hora de sentar pra escrever?

LOYOLA: Aline, os anos todos me dizem que cada livro é um novo livro; e que minha experiência é pouca; e que não devo ter medo dos riscos, do anti-convencional, fazer do jeito que quero, como quero, sem pensar em mais nada que contar a minha história, sem pensar em sucesso, em boas criticas, em elogios, em milhões de exemplares. Sentar-me à mesa, limpo por dentro. Como se fosse escrever o primeiro livro. Sentar com tesão, mas sempre sabendo o final, onde quero chegar, porque quando chegamos a um aeroporto podemos comprar a passagem, só a passagem de ida. Num livro você precisa ter a ida (começo) e a volta (o final).

Paulo Scott – escritor

PERGUNTA: O romance ZERO é um dos mais importantes da literatura brasileira, sempre atual e sempre desafiador/inovador na sua estética. Há alguma semelhança mais grave (que você como autor diagnostica) entre o contexto social que o motivou a escrevê-lo e o que estamos vivendo hoje? O autor precisa ser engajado?

LOYOLA: Caríssimo Paulo Scott. Por que perdemos a comunicação, você e eu? A palavra engajado é velha, lembra Sartre e etcs. O escritor faz o que quiser. Mas é sempre bom olhar em volta e conhecer o povo brasileiro em sua diversidade. A inspiração para mim é olhar em torno da gente e trazer isto, sem panfletagens, para dentro da literatura. Tornar a realidade transfigurada. Entre ZERO e hoje, o que eu faria? Outro ZERO, não igual porque não há a tortura, os desaparecimentos, as mortes, os fuzilamentos. Mas há o medo, há uma censura enrustida, há os evangélicos e todas as religiões, que sabemos, mercenárias e lavam a mente de seus seguidores, ainda há os Bolsonaros, os Malafaias, as horrendas Eurenices Guerra, as Rosemarys Noronhas, os Sarneys, como há os Cunhas e todos os corruptos que tornaram a politica lama pura, fedida, nojenta, gosmenta. Há os contra o aborto, há os que abriram estupradores, há o tráfico de drogas, a polícia e bandido (quem é quem?), há os que roubam merenda das escolas, dilapidaram as estatais, enganam e enganaram o povo, há os grandes personagens gangsters do mercado financeiro.

Zema Ribeiro – escritor e jornalista

PERGUNTA: Lembro-me de um conto teu – O homem cuja orelha cresceu, do livro Cadeiras Proibidas – em que a orelha de um personagem crescia infinitamente, vazando pelas janelas e portas do apartamento e tomando conta da cidade. Em sua opinião, o que é, nos tempos atuais, esta orelha crescendo irrefreável? Seria possível enxergar nela, hoje, um paralelo com a corrupção e a falta de vergonha de nossa classe política?

LOYOLA: Zema, claro que a orelha crescendo hoje pode ser a corrupção, cutura arraigada, indomáveis, e ela vai crescer continuamente, vai tomar a toda a cidade, o estado, o país, e não há o que fazer (ou há, claro que há. Haverá). Assim como alguém sussurrou para a orelha parar de crescer e era preciso matar o personagem, precisamos matar os corruptores. Não adianta prender, eles continuam corruptos na prisão (veja o José Dirceu, o homem que vendeu e fodeu com todos os sonhos de minha geração, que continuou com tramóias mesmo preso como mensaleiro). A guilhotina foi uma boa invenção. Da Revolução Francesa.

André Sant’Anna – escritor

PERGUNTA:  Ignácio, você já viu país como este?

LOYOLA: Querido André, eu avisei no inicio dos anos de 1980: Não Verás Pais Nenhum. Está ai o que vislumbrei, inventando. A imaginação tornou-se realidade.

Xico Sá – escritor

PERGUNTA:  No comovente Os olhos cegos dos cavalos loucos, você faz uma confissão, guardada por décadas, e pede perdão ao avô. A essa altura da vida, ainda há muita coisa preciosa guardada que nunca foi dita nem contada em livro ou nos relacionamentos familiares e amorosos?

LOYOLA: Coisas minhas, Xico Sá, ou dos outros? Minhas tem várias, algumas terríveis, nem sei se vou colocar para fora. Assim como todo mundo tem, mas não se expõe. Mas um escritor que não se expõe, que tem escrúpulos, é um covarde medroso, de modo que estou em conflito comigo mesmo. Mas um dia contarei os mistérios das vestes sensuais, pecaminosos, sutians e decotes de sedas e voiles e brocadas e strass de uma velha tia, católica e carola, uma paralitica que tínhamos em família, cujos vestidos no dia a dia iam até os pés, mas por anos ela costurou secretamente vestes eróticas, pornôs, encontradas numa caixa, depois de sua morte. Como? O que esta tia tinha como fantasia? Mistérios do ser humano

Wladimir Cazé – poeta

PERGUNTA:  Eu li dois livros, ZERO e Não verás país nenhum. Não é bem uma pergunta, mas me chamou a atenção a diferença formal entre os dois livros: o primeiro é caudaloso, fragmentário, caótico, verborrágico; o segundo tem uma narrativa mais linear e contida, com todos os parágrafos tendo rigorosamente o mesmo número de linhas. Queria que você comentasse essas escolhas estéticas, considerando que no fim das contas o tema dos dois livros é o mesmo, o Brasil.

LOYOLA: Para ir a cada lugar você escolhe o transporte. Pode ser carro, bicicleta, avião, ônibus, caminhão, carriola. Para cada livro, de acordo com a história, você precisa saber que estrutura usar. ZERO se passa em uma época em que o Brasil estava estilhaçado, como que tendo sofrido um feroz bombardeio, fragmentos por todos os lados, barulho, confusão, medo perplexidade, violência. Como fazer um livro calmo, bonitinho, piedoso, narração tranquila? De modo algum. Dai o estilo nervoso, contudente, quebrado, explosivo, ruidoso. Aqui não há começo, meio e fim, tudo se mistura. Leia o livro do final para o começo e veja o efeito. Quanto a Não verás, a narrativa tinha de seguir o ritmo do personagem, um velho professor, vivido e sofrido que vai descobrindo as coisas aos poucos, lance por lance. Narrativa tradicional, portanto, com começo, meio e fim.

Livre Opinião

PERGUNTA: Ignácio, como o próprio nome do site (Livre Opinião – Ideias em Debate) pode sugerir, deixamos este final da entrevista como um espaço livre para o artista desabafar, criticar ou colocar em debate uma ideia. Você tem algo a dizer?

LOYOLA: Respondo com o titulo de meu próximo romance. Há dez anos não fazia um romance, mas a situação me levou a voltar. Estou puto, indignado, deprimido, sofrido, raivoso, sem conseguir definir nada, sem entender. Eu estive muito entretido (essa é a palavra) com contos e crônicas, textos curtos e suaves. O romance está vindo, vindo. Título?

DESTA TERRA
NADA VAI SOBRAR
A NÃO SER O VENTO
QUE SOPRA SOBRE ELA.

A frase é baseada em um poema de Brecht de 1921.
Quero que o título ocupe toda a capa.

★★★

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5 comentários sobre “Dez perguntas para Ignácio de Loyola Brandão nos seus 80 anos

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