‘Sol em aquário, ascendente em câncer’. Por Matheus Torres

Arte: "Rainha dos afogados", de Giovanna Braz

Colagem: “Rainha dos afogados”, de Giovanna Braz

eis o arco tenso: seu corpanzil em meu sofá amarelo, eu oposto a ti no colchão dobrado no chão. você  me traz notícias de um emprego bem pago para pagar suas botas bordô & a joia que ostenta no septo & os diferentes tipos de queijos & o vinho caríssimo & o doce de bolachas xoxadas em café que comprou pra nós dois. o arco tenciona: a luz do seu aparelho de comunicar o vazio inundando sua cara agora um pouco mais gorda e a barba bem mais farta: na sala apenas o som da minha gata faminta a lançar miados aos meus pés. não fosse isso e eu te diria que agora uso cremes esfoliantes por sobre os cravos da cara e confessaria ser maior a eficácia. talvez se roesse menos suas unhas elas teriam sido pinças por sobre os cravos da minha cara antes oleosa. e te contaria que agora eles nos dizem que não há o que temer. eles nos vigiam e nos trazem pão às nossas bocas. é verdade que agora talvez não vejamos mais aquela peça daquele autor daquela frase tão bonita que você postou no meu mural. contudo ainda há o pão em nossas bocas & os diferentes tipos de queijos & o vinho caríssimo & o doce de bolachas xoxadas em café que você comprou. e eles nos amam ainda que não saibam da pornografia em nossos computadores, ainda que não saibam que você cuspia salmos & salivas em minha garganta & da sodomia sob o crucifixo de aço no quarto da sua mãe. e eles nos amam porque o ladrão da rua de cima está preso e os outros dois foram amarrados nos postes de energia. eles nos amam porque comemoramos a execução com cravos & camélias. e embora não haja a peça daquele autor daquela frase tão bonita que você postou no meu mural ainda haverá outro linchamento para assistirmos já que não há dúvidas que outro carro será roubado. e então assistiremos comendo caramelos pois é certo também que irão o doceiro & toda a sua família. o arco tenciona infindavelmente: eis agora esta guerra de flechas ausentes: o tempo & o silêncio a corroerem meu vaso de gesso com flores carmim de polietileno. corroendo na mesma velocidade em que queimam a seda da sua taba e o papel do meu cigarro. percebeu como evito fumar contra o vento pro cheiro não impregnar na lã da sua blusa? a mesma delicadeza reservo às palavras: hoje somente a palavra-fruta em vias de apodrecer. nenhuma pra levar na mala com suas botas bordô & o resto dos diferentes tipos de queijos & o fundo do vinho caríssimo & as sobras do doce de bolachas xoxadas em café que você comprou. entretanto veja, este silêncio é outro, não aquela reminiscência do meu olho sobre o seu olho sobre o meu olho sobre o seu olho sobre a angulação da fresta de sol pela janela entreaberta sobre o amontoado de calças regatas cuecas sobre filetes de macarrão. não o silêncio na vassoura encostada na parede no balde de água turva no cheiro de lavanda do desinfetante bactericida lilás que te fazia espirrar quando faxinava sua casa enquanto me esperava chegar com os talos de alho-poró & um punhado de girassóis. digo deste silêncio da sua cara inundada pela luz do aparelho de comunicar o vazio, deste silêncio depois do almoço em que relutei em te rever mas você insistiu durante dois dias e eu cedi afinal tanto tempo tanto tempo tanto tempo e já é tempo e os meus sapatos são outros, comprei toalhas novas, troquei a roupa de cama, mudei de perfume, visitei Minas e o Rio, aprendi a comer abobrinha e a ordenhar a teta das vacas. digo deste silêncio que você finalmente acaba de quebrar me perguntando por que não gosto mais daqui. eu te digo o quão nada muda nessa cidade & das pequenas possibilidades presentes em um raio de alguns poucos quilômetros & da deficiência do transporte público pra se locomover de cá pra lá mas que isso também não fazia diferença porque são pequenas as possibilidades presentes em um raio de alguns poucos quilômetros. você ri e diz que meu único problema é eu ser dado a galáxias (não mostro, no entanto gargalho (gargalho tristemente pois minto (talvez você não desconfie que não sejam apenas as pequenas possibilidades presentes em um raio de alguns poucos quilômetros (mas o café passado pra uma xícara só, as canetas exatamente no mesmo lugar onde as deixei, o cigarro não roubado do maço ao anoitecer (sutilezas do insustentável delírio do Outro)))). você cessa o riso, levanta o punho, perguntando: posso? pode. e esbofeteia minha cara com a mesma destreza de machadadas sobre a água. outra vez, agora com a outra mão acariciando seu pau circuncisado. outra vez, agora com uma sinfonia de gemidos. outra vez até que a minha cara quase rubra se faça vertigem. outra vez até que a minha cara agora rubra sinalize: eis aqui ouro, incenso & mirra ao anticristo. então te chupo até ser análogo à besta. te chupo até as trombetas de aço trazerem à Terra revelações & acetileno. te chupo e engasgo pois me enjoa a mistura dos diferentes tipos de queijos com o vinho caríssimo com o doce de bolachas xoxadas em café. engasgo e fotografo seus olhos de chacal sobre a cidade lá fora e de soslaio um vértice de saudade daqui te escapa mas tudo bem talvez você pense afinal: ainda é tempo. o feriado prolongado só começou e já há respostas em seu aparelho de comunicar o vazio. lá fora você está livre da tensão deste arco: lá fora apenas o desatar de músculos & o estralar de tendões & a via crucis dos dentes nos labirintos por sobre ancas por sobre mamilos por sobre dedões por sobre clavículas de costas tatuadas. e eu volto a te chupar pois te chupar é dizer: ainda é tempo. eu te chupo e minha gata caga na caixinha na área de serviço: lembrança do infinito eco de deus. enquanto minha língua invade seu cu igual o tamanduá espreita as formigas em pequenos abismos, deus invade a sala pois não há areia suficiente na caixinha pra conter o implacável cheiro de vossa presença. era verdade quando mamãe me dizia ser onipresente esse sujeito de quatro letras e nenhuma sombra: minha língua em seu cu sente a mesma essência divina do cheiro da bosta felina. sendo infinitas as faces de deus, seriam infinitos os sabores das bostas? mesmo que chupasse com toda veemência as paredes do seu cu e sentisse o cerne da sua bosta, ainda me faltariam incontáveis & inúmeras facetas das inomináveis geometrias de deus. se reservássemos apenas a nós dois nossos cus tal qual duas toupeiras dividindo um segredo, até aos mais aventurados faltariam estas partículas de um Todo: constelações fracionadas. decido chupar insistente & sagradamente seu cu. chupo porque o tempo arruína tudo: nossa maionese azedou, o livro que te dei no seu aniversário se perdeu, já não existe mais aquela pizzaria onde pedíamos às sextas, vivo menos depois de um cigarro mais, a janela emperrou, os cactos morreram. chupo insistente & sagradamente seu cu porque já não há mais palavra alguma e o gosto de deus é melhor que qualquer ameixa. chupo insistente & sagradamente seu cu como quem chupa carvão até torna-lo diamante. então gozamos no exato-mesmo-instante: somos dois meninos mijando mercúrio no leito do rio. o arco de tão tenso agora é círculo, silhueta perfeita de nectarina. não fosse isso e dividiríamos shampoos & colônias. não fosse isso e eu elogiaria seu corte de cabelo (mesmo que julgasse mal feito o trabalho do barbeiro) e dias depois comentaria enquanto comemos pastel & caldo de cana sobre as falhas deixadas pela navalha. não fosse isso e eu dormiria durante seus filmes sem qualquer constrangimento & reclamaria do cheiro do seu desodorante mas sentiria sua falta quando percebesse o mesmo cheiro em meio a um ônibus lotado. não fosse isso e agora sentaria à beira da sua pupila & alimentaria as carpas douradas. não fossem os entretantos contidos no hidrogênio e seria tudo então apenas um outro sagrado.

★★★

matheus

Leia o livro de poesia de Matheus Torres: Arquitetura do Cais

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