[1] Meu coração sempre foi alvo fácil.
[2] Você, Carlos, ignorou meu coração flechado.
[3] Véspera do Dia dos Namorados. Voltei ao Recife para ver ressuscitado o meu romance “Nossos Ossos”.
[4] Os urubus, cênicos, aguardavam o público de olho em tudo que é carcaça.
[5] Era a estreia da peça “Ossos” pelo Coletivo Angu de Teatro.
[6] O Angu tem esse nome devido ao meu livro de contos “Angu de Sangue”, que eles também montaram.
[7] É tudo ossos e sangue quando escrevo.
[8] À porta da entrada do teatro, uma coroa de flores com a frase “nossos ossos esperam os vossos”.
[9] Há um outro livro meu de contos, chamado “BaléRalé”, em que na capa você encontra a fotografia de duas múmias abraçadas.
[10] As múmias são de dois homens assassinados.
[11] Dois homens atirados em um pântano holandês.
[12] Porque eram gays.
[13] Fico pensando em nós dois, Carlos. E tudo em mim é sempre urgente e dramático.
[14] A peça conta a história de um amor quase “autobiográfico” – Carlos é, nesse caso, bem atual e real.
[15] Trata-se da história de Heleno de Gusmão que, abandonado pelo namorado, Carlos, leva o corpo de um boy morto para ser enterrado.
[16] O boy é um garoto de programa, com o qual Heleno se envolveu.
[17] O garoto de programa foi assassinado e largado no Instituto Médico Legal.
[18] Heleno luta para tirar o corpo do boy do IML para devolvê-lo à sua terra natal.
[19] É uma trajetória de um amor generoso. O nosso mundo precisa, até o osso, ser mais generoso.
[20] O Coletivo Angu de Teatro sempre foi generoso comigo. Assim, até a alma.
[21] O Coletivo me ajudou na adaptação do romance – a enfrentar, de novo, esses fantasmas.
[22] Marcondes Lima, o diretor do espetáculo, é um engenhoso e genial transplantador.
[23] André Brasileiro, ator e produtor, virou em cena o meu alter ego. Entendeu o meu peito. Mais do que qualquer outro sujeito.
[24] Brasileiro deu vida, e morte, exatamente a Heleno de Gusmão.
[25] Faz tempo que André Brasileiro não me deixa morrer solitário.
[26] Ele vem e acende a luz de meu quarto, Carlos.
[27] Jathyles Miranda é quem faz a iluminação da peça.
[28] Quando eu morrer eu quero que Jathyles me guie por dentro da escuridão.
[29] Se depender do teatro, eu não morrerei tão cedo.
[30] A literatura, essa retira, com cuidado, a flecha plantada no meu peito.
[31] Não me deixa falando sozinho, Carlos. Neste universo, espelho.
[32] No palco, Marcondes Lima, figurinista e cenógrafo e o diretor (que conta com a assistência na direção de Ceronha Pontes), aparece também como ator fazendo Estrela.
[33] Estrela é uma travesti que veio morar em São Paulo.
[34] Marcondes faz, com brilho, essa estrela (de)cadente.
[35] Tu? Ou serei eu?
[36] Arilson Lopes, um astro de primeira grandeza, quando interpreta o personagem Seu Lourenço.
[37] Seu Lourenço trabalha na Funerária Novo Horizonte e é quem leva os dois gays no rabecão.
[38] Seu Lourenço é igualmente solidário. Sem ele, os gays não entrarão no céu.
[39] Ivo Barreto, Daniel Barros, Robério Lucado estão nos esperando, no mesmo céu do palco, de coração aberto.
[40] Nenhum desses atores deixará a nossa arte morrer.
[41] O “golperno”, que aí está, não gosta dos artistas. Nem dos viados.
[42] A música final da peça celebra gente que brigou por nós, artistas. Escritores, poetas, atores, dramaturgos.
[43] A trilha sonora da história de amor, contada pela peça, foi composta pelo visceral Juliano Holanda.
[44] Requiém, concerto fúnebre, celebração da memória, um minuto de silêncio…
[45] Em nome dos 49 homossexuais e simpatizantes mortos na cidade de Orlando, nos Estados Unidos. Quase ao mesmo tempo da estreia de “Ossos”.
[46] Em todo canto, matam um. Flechado, ignorado, cuspido do mapa, solitário, vazio, infeliz, espancado, fuzilado.
[47] O poeta Federico García Lorca, assassinado com um tiro no rabo, é um dos exemplos de ataque homofóbico lembrados pela peça.
[48] Eu escreverei sobre eles, por eles, para eles, por você e por mim, até o fim. Sempre, eternamente no livro e no palco, vingados.
[49] Sou eu a quinquagésima vítima do atentado. Não enxerga isso, Carlos?
[50]
SERVIÇO
OSSOS
De Marcelino Freire
Pelo Coletivo Angu de Teatro
Direção: Marcondes Lima
Trilha sonora original: Juliano Holanda
Estréia: 11 de junho, as 21h
Temporada: de 11 a 26 de junho
Sextas, as 20h – Sábados, as 18h e 21h – Domingos, as 19h
Onde: Teatro Apolo (Rua do Apolo, 121, Bairro do Recife)
Ingressos: R$20,00 inteira / R$10,00 meia-entrada
Informações: 81 3355-3321
Classificação indicativa: 16 anos
Vendas: Bilheteria do teatro e site ne10ingressos!
Maravilha de texto. Parabéns.