
A imagem do Recife Antigo sem as “torres gêmeas”, fruto da feroz especulação imobiliária que toma conta da cidade
Está lá, de novo e ressurgida da colônia de cupins, a camiseta da Livro 7.
Em uma das primeiras cenas do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho.
Quem é pernambucano viu. E sabe. A Livro 7 era onde nos reuníamos, tanto pobres quanto nobres. Ela foi, durante muito tempo, a maior livraria do Brasil. Em número de títulos reunidos. E era ponto de encontro. E lá li meus primeiros livros. E fiz meu primeiro cartão de crédito literário. Federico García Lorca em 12 prestações. Clarice Lispector em 24.
Tarcisio Pereira, o proprietário (nem todos os proprietários são de imóveis), sempre vestido de azul, nos recebia pessoalmente. Sorridente. E ajudava os artistas locais. Imprimindo, gratuitamente, cartazes de peças, programas de shows, camisetas de eventos. Era só pedir.
Lembro-me: eu, estudante cariado e carente, indo lá pedir para Tarcisio nos apoiar na divulgação do que eu e meu grupo teatral fazíamos no bairro periférico de Água Fria.
É disso que o “Aquarius” fala. Quando nos mostra, em uma festa-plano-inicial, lá pelos anos oitenta, uma pessoa vestida com uma dessas camisetas impressas com o logotipo da livraria – logo engolida pelas megastores. O filme toca neste assunto. O resgate da autoestima. Da nostalgia. Daquele Recife Antigo que nos abrigou. Dos casebres prostitutos. Das escadarias dos sobrados. Da Boa Viagem de meus primeiros mergulhos. Do tempo em que os tubarões sobreviviam de sua própria cadeia produtiva. Devidamente alimentados. De uma cidade em que podíamos caminhar com nossas bicicletas e carros. Avistando e sendo avistado por muros baixos. Tudo, agora, transformado em especulação e ostentação. Os prédios, ultramodernos, roubando o sol de nossa praia. De águas verdes, morenas, negras, mamelucas, claras.
Clara, a personagem de Sonia Braga, é teimosa. E doce e dura (feito rapadura). Não quer que o tempo dela morra. Mulher-Aranha (não Arranha-Céu) não se entrega fácil às teias (telas brancas) do sistema imobiliário. É livre para dizer não. Para fazer valer a sua opinião.
Nós, pernambucanos, igualmente sentimos na pele quando Kleber, majestosamente, em outra rápida cena, faz desaparecer da paisagem do Recife as duas torres, fascistas (imagem no alto desta página), lá erguidas para engolir a nossa história. É de “nossa história” que o diretor nos fala. Pernambuco, oco, falando para o mundo.
Aqui mesmo, onde vivo há mais de vinte anos, no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, vejo constantemente um “Aquarius” ser demolido – um teatro, um espaço alternativo, um núcleo de pensamento. O filme diz desta demolição. É o “pensamento” lutando contra um sistema que pesa, não pensa. Que nivela tudo por alto.
E o quanto Clara é clara em seus argumentos. Seja dentro do núcleo da família. Seja entre as amigas sexagenárias. Ou em seu flerte amoroso, dentro de um carro, estacionado. “Tive câncer de mama”. Ela diz a um paquera – um coroa recolhido do salão (não pista) de dança. Se quiser mamar, que seja no outro peito. Eu deixo. Só não abuse de meu sentimento. Ele é meu. E, sendo meu, tenho para quem doar. Toda minha liberdade. Ao garoto de programa o meu amor (é preciso ver o filme para saber do que eu estou falando). Há mais o que construir com este amor, assumidamente bandido. E livre.
É um filme livre este novo trabalho (demolidor e edificador) de Kleber Mendonça. E há, sim, de se denunciar, por meio da arte, quem é contra a liberdade. Os bons livros idem fazem isto com a gente. Com eles, espalhados pela Livro 7, eu me recordo: é que conseguimos, toda uma geração, juntos, erguer o nosso caráter.
Sonia “Clara” Braga, gigante em sua interpretação, resgata, em boa hora e era, essa nossa antiga imagem. Atual, e pronta para a luta, diga-se de passagem.
★★★
Texto emocionado e emocionante. Lágrimas marejam no mar de memorias que você recupera do tempo que se foi-mas-continua-em-nós. A semente que você foi hoje é árvore imensa, frutífera e semeadora. Abraço, gratidão.
Um filme absurdo de bonito: muito profundo. Não um segundo apenas que não represente algo imenso para representar a vida! O pequeno idiota burguês “gente de pele escura” – como ele diz X Clara. Clara somos nós, povo, gente de verdade!
Maravilhoso!
Marcelino, reproduzo aqui um comentário que fiz no Facebook, sobre este texto:
Que belíssimo texto. Todo lindo, mas este trecho: “Mulher-Aranha (não Arranha-Céu) não se entrega fácil às teias (telas brancas) do sistema imobiliário. É livre para dizer não. Para fazer valer a sua opinião” encerra tantas verdades sobre o filme, sobre o tema de que trata, sobre a majestade de Sonia e a verdade de Clara que tive vontade de aplaudir. Obrigada por isso!
Eu, que sou paulistana, fiquei tremendamente impactada pelo filme (sou fã do Kleber há tempos). E também rabisquei umas coisinhas, por acaso também lembrando da Era de Aquarius:
http://alessandraalves.blogspot.com.br/2016/09/aquarius-um-tratado-sobre-resistencia.html#links