O processo de montagem de um novo espetáculo é sempre o momento mais agudo da minha vida. Sempre que o momento urge, inicia-se em mim uma espécie de desconstrução criativa, pasmo abissal, escândalo informativo, colapso temporal, caos dramático. Tudo o que penso, imagino, estudo, pesquiso, desenvolvo, projeto, cobre-se de uma acentuada insignificância, irrelevância; a mais absoluta comprovação da verdadeira inutilidade da arte, do teatro, do artista. Tudo apodrece, tudo é falência, tudo é angústia, tudo é miséria, tudo é desencanto, tudo é descontentamento. Só me reconheço inútil, medíocre, embusteiro.
Então, para que isso tudo? O que me motiva? O que me provoca? O que me faz ser o encenador da próxima montagem da Pequena Companhia de Teatro? A utopia. Eu acredito piamente que, depois de pronto, o futuro espetáculo da Pequena será capaz de transformar o mundo. Sim. Transformar o mundo: acabar com a fome, resolver o problema dos refugiados, reduzir os índices de analfabetismo, suspender o aquecimento global, derrubar o governo Temer. A insistente leitora, o resistente leitor, devem espantar-se com o tamanho da minha pretensão nesta última sentença, mas é isso que eu pretendo quando se inicia uma nova jornada teatral. No momento da criação de um novo espetáculo, a exigência que me faço é que a montagem tenha a potência necessária para mudar o mundo. Claro que a realidade chegará, e a estreia confirmará outro dos tantos fracassos que colecionei durante toda minha vida. Mas, agora, com toda a dor da insegurança, acredito nisso.
Não sei bem como meus companheiros de grupo lidam com o início de um processo. Nunca sentamos, Katia, Jorge, Cláudio e eu, para falar das nossas aflições no momento de iniciar uma nova montagem. Como também é ofício, sempre nos concentramos no desenvolvimento do espetáculo, com seus ensaios, discussões, pesquisas, recursos; mas raramente externamos angústias íntimas, dúvidas existenciais, agonias criativas. Fazemos isso paralelamente, amigos que somos, um com outro, outros sem um, dois entre dois, e as configurações que o número quatro permite. Tampouco sei como outras pessoas lidam com isso. Raramente ouço de um amigo em processo de montagem quais são os seus fantasmas; divagamos sobre técnica, caminhos, leituras, treinamento, temática, mas raramente o âmago, a víscera, a chaga, a dor.
Dói. Dói em mim tudo o que há para dizer, tudo o que há para fazer, tudo ao mesmo tempo agora, e nunca, e sempre, e de repente. Sustento, apunhalada às minhas costas, a bandeira da transformação, e para alcançar o feito tento me transformar em um delirante, em um demente, em um infame; buscar o dito na palavra muda, conseguir o grito que acorde o mundo, desferir o golpe que vença a injustiça; e me deparo com a falha, a falência, a derrota, o problema, o dilema.
Utopia. Começar um novo espetáculo é reafirmar o poder da utopia, é relembrar a importância da luta inútil, é iniciar a luta da batalha perdida. É o único e singelo momento em que se vive a epifania de compreender a subversiva inutilidade da arte. Por isso minha dor, meu descalabro, meu desatino, meu desalento. Claro que o leitor insensível perguntará, com o escarnio que lhe é peculiar quando encontra o momento de achincalhar este dedicado escritor, – e o teatro é isso tudo? – É necessário esse drama todo? – É preciso essa choradeira infinda? – Se é tão ruim, não para por quê?
Respondo que só sei fazer assim. Foi assim que a vida me levou para este caminho. Foi assim que as mazelas do mundo me fizeram desembarcar no teatro. Nunca decidi fazer teatro, eu me percebi fazendo teatro. O teatro foi se transformando no meu grito. O teatro foi se transformando no meu solo. O teatro foi quem me deu colo. Por isso tem que ser assim. Por isso não pode ser diferente. Por isso não posso parar. Por isso não posso abandonar a utopia. Porque sem acreditar que podemos mudar o mundo minha vida não faria o menor sentido, e de inútil basta a arte.