estávamos cansados, eu disse:
– você quer?
transar agora.
nos olhamos num sim que deu o Impulso,
montei em você tão menos cansada
a boca aberta
entrando o ar tão íntimo
no meio de nós como um filho.
pelo espelho percebi o tamanho que a gente fica um em cima do outro,
se levanto o braço alcanço o teto
depois o apartamento vizinho onde mora a viúva que tenta
não ser triste e consegue,
na maior parte do tempo.
cavalgando suada com a coxa queimando percebi que cada dia
é único, ainda que longos anos juntos tenham passado por nós, por mim, como se o vidro do carro estivesse aberto com tudo escorrendo
a viagem
a estrada
as pessoas
os sonhos, cada dia é uma rua que ninguém nunca viu.
deitamos depois do sexo um no outro e ouvimos
música
dizendo por cima dos sons o quanto a música chega
direto no
coração.
– desde criança eu me impressionava com o rádio de casa,
os furos do rádio,
os sons saídos dos furos.
a Hora da Saudade, aquele programa do eli corrêa que lia Carta, tinha uma música atrás enquanto ele lia a história da carta, geralmente uma história de morte.
o horário do programa era depois do almoço. ouvíamos eu, minha mãe e a Arlete,
no tanque a roupa
de molho esperava
se fosse num rio ela não esperaria
a correnteza levaria as meias, as calcinhas, tudo pro fundo
das pedras onde o Domingos morreu. – eu disse
e a gente pelado
sem querer transar de novo
o cachorro cheirando o lençol do sexo.
aquilo
me lembrava a felicidade que senti quando andei de bicicleta sozinha pela primeira vez. caí na rua e voltei
com a bicicleta na mão,
o joelho sangrando,
o sorriso pequeno sem precisar de ninguém, ainda que parecesse.
na mesa do nosso quarto tinha chocolate, dinheiro,
uns livros,
a chave
e eu não querendo
nada
apenas ficar no seu peito falando de
música:
– charles bradley sofre quando canta, ele tem um rosto de dor – eu disse.
o charles no metrô
gravando seu clip ficando muito famoso sem poder na vida real pegar um metrô e não ser abordado por pessoas que já ouviram a sua música
que já viram a sua cara
na internet e gostaram muito
de tudo
da cara, da música, da interpretação e se sentiram menos sozinhas.
charles faz companhia para estranhos,
lutou por isso a vida toda,
quando canta ele não pensa no sucesso,
mas depois ele pensa
e também nas contas que ele tem que pagar.
você diz:
-claro.
e me faz um
cafuné
mostrando que a vida é só o momento que temos respirando.
o resto é ânsia
de ansiedade
ou gaveta
de guardar o que já foi.
respiro fundo
suspeitando que não aguento
entendo kurt cobain que se matou.
– mas você é tão forte. – diziam.
a vida é tão longa, eu digo,
uma solidão de mar no inverno
que não dói.
-tenho mais dias que não doem. – te digo enquanto você quase dorme
o cafuné se
desmancha, seu pau parece uma bexiga
sem ar.
Confira os textos anteriores da escritora Aline Bei