Santiago Santos: Da Fumaça Que Faz Família

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Minha mãe nutria um receio por demais de grande de encontrar meu pai garrado noutra mulher. Ao contrário de outras casas, onde o homem saía pra labutar a comida, era ela quem saía pra faxinar as mansões do centro. Meu pai ficava, sentindo troçado com um garrote na garganta, um lençol enchendo os pulmões como bexiga d’água, ele dizia, que ar entrava só no cantinho que cabia, e era por isso que ele não corria mais; na verdade ele nunca tinha corrido muito, mas andava bastante, e agora era só sala e quarto e às vezes o quintal comigo e com meus irmãos. Ele ainda não tinha mandado construir a cabana pra fazer linguiça. Ela chegava do serviço batendo o portão, gritando o nome dele ou o nosso, que era pra avisar que tava chegando, ela que achava meu pai lindo de olho verde, e ele dizia a besteira que era alguém se engraçar com fôlego de grilo; ela dizia que se tinha ela tinha outras e jurava de pé junto, e a gente pequeno não entendia nada, era uma janela aberta com cortina batendo que ela refazia as certezas e a discussão recomeçava até a primeira tosse do meu pai, quando ela apertava os dedos sobre o coração e levava ele pra cama e fechava a porta que não era pra gente olhar enquanto ele se acalmava.

Minha mãe tinha medo do meu pai voltar pra casa. Tinha tanto medo dele voltar que a gente trocou de casa e nunca disse pros vizinhos onde tava indo, e viemos parar nessa cidade, onde ninguém conhecia a gente nem na rua nem no colégio nem na igreja, e minha mãe conheceu um homem feio de voz bonita, que era rouca porque ele fumava demais. Ele gostava de trazer peixe da feira e assar no latão, e dizia que a gente tinha que tomar cuidado com as espinhas, eu e meus irmãos, que podia atravessar na garganta e fazer a gente perder o fôlego e ele dizia que já tinha tirado espinha do peixe da garganta do filho dele; quando ele disse “filho” a gente assustou mas ele não podia voltar atrás, e disse que salvou o filho mas que nunca mais tinha visto o filho e minha mãe só fez que sim com a cabeça, disse depois que aprendeu a gostar de ouvir a voz dele enquanto envelhecia e nunca deixou de olhar de rabo de olho pro portão no final da tarde, quando a gente voltava da rua pra janta, que era a hora que meu pai, o verdadeiro, sempre aparecia penteando o cabelo com um pentinho de palma.

Minha mãe pedia pro meu pai não fumar perto da gente que era ruim, ela sabia que era ruim porque o padrasto dela fumava muito perto das crianças e ela tossia, ela e alguns irmãos, e um deles tossiu até morrer e ela sempre falava desse irmão, que queria ser jogador de futebol, e pedia pro meu pai respeitar a gente ou então pelo menos ela, já que não era uma coitada que só cuidava da casa, era revisora de revista e também colocava comida na nossa boca e roupa no nosso lombo, e ele podia lembrar disso quando dizia que ia viajar pra vender enciclopédias e se metia era em bairro porcaria gastando o pouco que conseguia nos dias direitos. Lembro que ela gostava muito de sanduíche de linguiça, dizia que era a coisa mais deliciosa do mundo, que ela aprendera a comer com o bisavô dela, que apesar de ter problema pra respirar viveu muito, e passou seus últimos anos fazendo linguiça numa cabana no quintal de casa. Ela comia sanduíche, tossia, falava alguma coisa, tossia, pedia pra gente limpar a casa, tossia, mandava a gente pro colégio, tossia, limpava a louça, tossia, e meu pai, quando chegava fedido e com a camisa pra fora da calça, dias mais tarde, acendia um cigarro e soltava fumaça na cara dela, e dizia que tava com saudade, e ela tossia.

Minha mãe nunca aceitou meu marido porque ele fumava. Eu não ligava, nem pra ela nem pra ele. Eu já não tinha mais ilusão de amor, aprendi no terceiro casamento que sossego era suficiente. O sossego foi tanto que me fez buscar meu sobrenome, e desencavei até descobrir que minha bisavó tinha mudado de cidade, fugida, depois que traiu meu bisavô, e levou a família toda e não ficou em paz até saber que o marido antigo tinha morrido. Meu trisavô, que não respirava bem, era fraco mas não era manso. Ele chamou o sujeito pra ir na casa dele, contratou uns rapazes da pedreira, jogaram no rio. Brincavam dizendo que a linguiça que ele fazia não era de porco, ele só ria. Fiquei sabendo que ele não fumava. Mas o pai dele, quando ele ainda tava na barriga, fumava muito. Esse meu tataravô fumava de nervoso, no quarto com a mulher, toda noite, porque não ganhava o suficiente no mercado e duvidava que fosse conseguir cuidar do menino como ele achava que deveria, o primogênito, tratar ele bem pra crescer com saúde e forte.

santiago santos

Parceria Flash Fiction
Arte da vitrine por Jean Fhilippe

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