NEM CHICO, NEM GIL, NEM CAETANO… A música brasileira na voz de Belchior. Por Josy Teixeira

Foto: Gustavo Pellizzon/Diário do Nordeste

Foto: Gustavo Pellizzon/Diário do Nordeste

Nesta quarta-feira (26), o cantor e compositor Belchior completa 70 anos. Um dos maiores nomes da nossa música, Belchior transformou gerações. Para comemorar, o Livre Opinião – Ideias em Debate realizará diversas homenagens e depoimentos de artistas que tiveram influências das letras e canções do trovador da MPB. Leia abaixo o texto de Josy Teixeira (professora de Linguística, radialista e pesquisadora da Universidade de São Paulo) josyteixeira@usp.br.

★★★

Na pesquisa de doutorado em Letras que realizei na Universidade de São Paulo, concluída em 2013, analiso o embate ideológico-musical entre Belchior e os compositores de sua geração, bem como com aqueles que são seus precursores, todos artistas da música brasileira considerados grandes ícones desde a década de 60 até hoje, particularmente Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.

Para instituir um diálogo polêmico com esses cancionistas da música brasileira, mais que recursos linguísticos, Belchior investe em procedimentos discursivos e argumentativos, os quais por sua vez abrangem os elementos linguísticos. O recurso propriamente linguístico adotado por Belchior, sem dúvida, é o da intertextualidade ou das relações entre o texto de suas canções e o texto das canções de outros compositores. Ele não somente cita trechos de canções de outros compositores, mas faz intervenções polêmicas junto a essas citações. O exemplo mais evidente acontece na canção “Apenas um rapaz latino-americano”, na qual inicia a letra citando entre aspas trecho da canção “Divino maravilhoso”, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, que diz: “Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!”. Ao finalizar a canção, o sujeito do texto se posiciona contrário àquela visão exposta anteriormente, afirmando: “Mas sei que nada é divino / Nada / Nada é maravilhoso, nada / Nada é secreto, nada / Nada é misterioso / Não (…)”. A polêmica com Caetano por parte de Belchior também é revelada por meio da qualificação do autor da canção citada como “antigo”, como se vê no trecho: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio / Em que o antigo compositor baiano me dizia: / – ‘Tudo é divino! Tudo é maravilhoso!’ ”.

Além dessa polêmica aberta, que é declarada pelo próprio compositor no interior do texto, há muitos outros exemplos de polêmica velada, só identificada em um nível discursivo mais profundo. Como por exemplo, quando Belchior se apropria de temáticas já exploradas pelo cantores tropicalistas, dentre elas a da “descoberta” do Brasil. Na música “Quinhentos anos de quê?”, de 1993, Belchior denuncia toda a destruição causada pela chegada dos navegadores à costa brasileira, dialogando de forma polêmica com a canção “Três caravelas”, de Alguero e Moreu, e com versão de João de Barro, interpretada por Veloso e Gil de forma ufanista no início da carreira.

Uma outra polêmica bem marcada é a que diz respeito ao investimento em línguas estrangeiras, especificamente ao uso do inglês. Belchior critica, desse modo, a adesão pelos baianos à cultura de língua inglesa, o que pode ser atestado na canção de Belchior “Coração selvagem”, que diz reiteradamente: “meu bem / que outros cantores chamam baby! / que outros cantores chamam baby! / que outros cantores chamam baby! / meu bem…”. A letra polemiza mais diretamente com a canção de Caetano Veloso, “Baby”, imortalizada por Gal Costa.

No que concerne aos principais alvos dessas polêmicas, pelos exemplos que mencionei acima, Caetano Veloso e Gilberto Gil se destacam como alvos fortes dessa polêmica. Por outro lado, outros atacados são também Roberto Carlos, Chico Buarque, Raul Seixas, Tom Jobim, João Gilberto, dentre outros. A hipótese da tese foi a de que as polêmicas estabelecidas por Belchior podem ser bipolarizadas entre Belchior, o polemizador, e Caetano Veloso, o principal alvo da mensagem polêmica.

Para analisar os modos das reações dos envolvidos nas polêmicas, usei como base principalmente a materialidade das canções, a verbal e a musical. No entanto, não desconsidero as reações dos compositores em outras instâncias para além das canções, como em entrevistas e depoimentos públicos.

Dentre os compositores atingidos, Raul Seixas é o único que responde a Belchior por meio de uma canção. Na composição de título sintomático “Eu também vou reclamar”, em parceria com Paulo Coelho, encontra-se uma crítica ao que Raul chamava de “modismo MPB”: a tendência ao protesto. Nela, depois de se referir negando (“Não há galinha em meu quintal” e “E nem sou apenas o cantor”) a duas canções de Belchior, além de criticar a voz do cearense, chamando-a de “chata e renitente”, Raul ironicamente sentencia:

“Eu já cansei de ver o sol se pôr / Agora sou apenas um Latino-Americano / Que não tem cheiro nem sabor / (…) / Mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha / Porque eu sou um rapaz Latino-Americano / Que também sabe se lamentar”.

Essa canção, que em nível textual se refere duplamente à “Apenas um rapaz latino-americano” e à “Galos, noites e quintais”, pode ser lida como uma resposta de Raul à canção de Belchior “Alucinação”, que traz uma crítica ao artista baiano e à canção “Trem das sete” no verso que se segue:

“Eu não estou interessado em nenhuma teoria / Em nenhuma fantasia, nem no algo mais / Nem em tinta pro meu rosto, oba-oba ou melodia / Para acompanhar bocejos, sonhos matinais / Eu não estou interessado em nenhuma teoria / Nem nessas coisas do Oriente / Romances astrais”.

Quanto a Caetano Veloso, este de modo geral silencia qualquer resposta a Belchior nas suas canções; porém, elas surgem, mesmo que de modo irônico, em algumas declarações públicas de Caetano. Já os outros compositores como Roberto Carlos, Tom Jobim e João Gilberto não esboçam reação. Talvez essa não reação se explique pelo fato de que o diálogo polêmico com esses últimos tenha sido instituído principalmente de modo velado. Já a não reação de Caetano Veloso, segundo entendo, estaria muito mais relacionada a uma não resposta consciente do cancionista. Contudo, essa não resposta é ao mesmo tempo uma resposta que desconsidera o diálogo instaurado por Belchior.

No que diz respeito à influência da mídia e do público no diálogo polêmico promovido por Belchior, observo que o artista inaugura as polêmicas no primeiro e segundo LPs, de 1974 (A palo seco) e 1976 (Alucinação), respectivamente. E encerra a polêmica no último disco autoral, com Baihuno de 1993. No momento em que Belchior passa a fazer parte do casting de grandes gravadoras, a partir do ano de 1976, quando gravou seu mais importante disco, a polêmica se arrefece. Ela retorna, assim, após cinco anos de afastamento das grandes gravadoras e por ocasião da gravação do CD de 1993, em uma gravadora considerada alternativa no mundo das majors. Em resumo, o discurso polêmico por parte de Belchior é amenizado durante o período em que ele grava nas grandes gravadoras do Brasil (Polygram, Philips e Warner); e reaparece no período em que ele está afastado dessas gravadoras e registra um novo álbum por uma casa que aposta na arte não comercial, a Movieplay. Disso tudo se constata que a mídia constituída pelas gravadoras exerceu papel importante na apresentação do discurso polêmico.

Quanto ao público ouvinte, não realizo na tese pesquisas de recepção dessas obras, não podendo tirar maiores conclusões quanto à reação do público. No entanto, analiso qual a relação entre os compositores e o seu auditório expressa na própria canção e no discurso dos cancionistas.

Mostro ainda na tese que Belchior pretende instituir um percurso na música brasileira muito mais próximo de uma singularidade criadora do que de qualquer ligação a um grupo ou movimento musical específico. No entanto, o modo como a mídia e a crítica musical e jornalística classificam Belchior no contexto da música brasileira situa o artista basicamente em dois grupos. O primeiro deles é o que ficou conhecido como “Pessoal do Ceará”, o qual reúne os artistas que a partir da década de 70 chegaram ao mercado nacional da música, particularmente aos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Dentre eles Fagner, Ednardo e Amelinha são os principais expoentes. O outro grupo no qual esta mesma crítica posiciona Belchior é o da intitulada MPB, que agrupa artistas dos mais diversos gêneros musicais, mas todos ligados a uma apreciação valorativa positiva e elitizada. Neste grupo estão Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, João Bosco, Djavan.

Quanto a falar de características desses grupos, a depender do olhar, um ou outro fator será considerado. Meu interesse na pesquisa não é caracterizar os agrupamentos musicais, mas identificar como Belchior lida com essas caracterizações e julgamentos. De todo modo, o agrupamento intitulado MPB seria o mais adequado a Belchior, pois sua obra engloba muito mais um projeto nacional ou, melhor dizendo, de inserção do Brasil na América Latina e no mundo, do que está associado a um regionalismo restrito, o que está implicado na classificação “Pessoal do Ceará”.

Não fez parte da metodologia da pesquisa entrevistas com Belchior, nem com os outros envolvidos nas polêmicas. No entanto, pude percorrer o posicionamento para além da obra cancional e as possíveis reações dos outros envolvidos na polêmica por meio de depoimentos e de entrevistas publicados e divulgados nos grandes meios de comunicação do País e internacionais (rádios, revistas, jornais e emissoras de TV), bem como na Internet, a partir da década de 60 até os dias atuais.

Leia mais em:

Clique para acessar o 2007_dis_jtcarlos.pdf

http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8142/tde-07102014-121114/pt-br.php

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