Um autor marginal que de fato incomoda, verdadeiramente surrealista, desconcertante, irônico, nonsene, imoral, louco… Essas são apenas algumas expressões encontradas para se dirigir ao escritor mineiro Walter Campos de Carvalho. Dono de uma obra literária provocante, para se dizer o mínimo, teve o merecido reconhecimento com seu terceiro livro, ‘A lua vem da Ásia’, de 1956, lançou mais três livros (‘Vaca de nariz sutil’ de 1961, ‘A chuva imóvel’ de 1963 e ‘O púcaro búlgaro’ de 1964), escreveu esporadicamente para ‘O Pasquim’ e depois sumiu da cena literária.
A história conta que Jorge Amado, grande admirador e amigo do autor, após ler ‘O púcaro búlgaro’, disse que Campos de Carvalho jamais voltaria a escrever outro livro. E foi o que aconteceu. Após 1964 o autor não publicou mais nenhuma obra, deixou de lado o mundo literário e também foi deixado de lado – passou de marginal a marginalizado dentro do mundo editorial. Muito se especula sobre sua reclusão, sendo objeto de difícil compreensão até para o próprio autor, mesmo assim, João Felipe Gonzaga em sua dissertação de mestrado intitulada ‘Um resgate da obra de Campos de Carvalho: o surrealismo e a produção do cômico’, diz que o mais conveniente para entender esse silêncio é procurar as explicações dadas por Campos de Carvalho. E o motivo dado para o seu silêncio, em suas raras entrevistas, foi o humor. Ou a falta dele. Explico: o humor é um dos elementos mais importantes de sua obra, levado até as últimas consequências. O que aconteceu foi que tudo que o autor escreveu após ‘O púcaro búlgaro’ saia sério demais, trágico demais. Ao que parece essa obra exauriu o seu humor. E assim, sem entender muito bem o porquê e acatando as palavras do grande Jorge Amado, ele simplesmente parou.
Mas, ao invés do fim, falemos do começo, ou ainda, da obra que o apresentou ao grande público.
A primeira frase do romance ‘A lua vem da Ásia’ deixa claro o que vamos encontrar pela frente: “Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica”. E realmente, o humor nonsense, construído em grande parte pela falta de lógica nos fatos narrados, dá o testemunho que comprova esse assassinato muito necessário à estrutura da obra, que foi devidamente julgado, sendo que o réu confesso foi absolvido por cinco votos contra dois. A história acompanha o narrador/personagem chamado Astrogildo (que já atendeu por Adilson, Heitor e Ruy Brabo) em suas viagens imaginarias, ou não, ao redor do mundo e em suas desventuras em um hotel de luxo, que nosso narrador/personagem logo desconfia ser um campo de concentração – achando provas indiscutíveis para comprovar sua tese – e que, ao leitor, parece tratar-se de um hospício mesmo – o que realmente é.
A comparação com o conto ‘Diário de um louco’ de Nikolai Gógol é inevitável, começando pelo fato de ‘A lua vem da Ásia’ ter sido escrito em um tom confessional, quase como um diário. A distribuição caótica dos capítulos do livro também denuncia essa proximidade entre as obras (do Capítulo Primeiro pulamos para o Capítulo 18º, para depois darmos de cara com o Capítulo Doze e avançarmos para um capítulo Sem Capítulo). Outro ponto em comum é a passagem dos lampejos de sanidade (?) aos extremos da loucura, apresentando nas personagens facetas bastante instáveis e violentas e, no caso de Astrogildo, mórbidas.
Outra comparação da qual não conseguimos fugir é entre a ironia presente na obra machadiana e o humor de Campos de Carvalho. Ou, ainda, tratando-se do conto ‘O alienista’ e de ‘A lua vem da Ásia’, surge a percepção, trabalhada exemplarmente por ambos os autores, de que há mais loucura fora do hospício do que dentro. Quando, por exemplo, Astrogildo foge com alguns companheiros de sua prisão, de uma forma não tão emocionante como os planos previam, e os capítulos deixam de estar separados por capítulos e passam a se separarem pelas letras do alfabeto, vemos que a sociedade é tão insana quanto nossas personagens até então apresentadas. Como no momento em que são mostradas as ruas imersas em suas revoluções cheias de tiros, sangue e palavras de ordem, ou ainda, no ato inescrupuloso do médico comprando um cadáver de um afogado que ainda estava em bom estado e a um preço justo. O texto de Campos de Carvalho cospe-nos na cara a forma hipócrita que tratamos os que se desviam da normalidade imposta pela sociedade (também conhecidos como loucos) e de como há loucura naquilo que tratamos como normal.
Nos escassos estudos literários que citam Campos de Carvalho, que foram se avolumando nas duas últimas décadas, sua obra sempre foi enquadrada – se é que dá para enquadra-la em algum gênero literário sem medo de ser feliz – como sendo surrealista. E o autor assumiu essa pecha, declarando-se fortemente influenciado pelo surrealismo, mesmo dizendo que nunca se forçou a ser surrealista. E faz sentido (??), afinal o surrealismo prevê essa coisa da escrita automática, a destruição das fronteiras entre o real e o irreal com a introdução do sonho e da loucura para explorar os estados psíquicos em detrimento da razão. Se assassinar a lógica na primeira frase de ‘A lua vem da Ásia’ e nos mergulhar em uma série de viagens fantásticas/fantasiosas protagonizadas por uma pessoa que claramente tem distúrbios mentais não for o bastante, basta prestar atenção na descrição que nosso querido Astrogildo faz das baratas em seu Capítulo Negro. A visão de uma barata morta, parcialmente devorada pelas formigas e com as patas para o ar, tal qual uma prostituta, revelam neuroses e distúrbios que poderiam muito bem estar pintado em um quadro de qualquer grande nome do surrealismo, para André Breton nenhum botar defeito.
Se Campos de Carvalho assumiu a pecha de surrealista sem reclamar muito, da herança do modernismo ele tentou fugir como os seus loucos tentaram fugir do hospício a bordo de um balão encomendado ao conde Zeppellin. E, como os loucos de sua obra, essa tentativa não deu muito certo (em verdade o que criador e criaturas encontraram foi um portão aberto para a liberdade, bastando dar apenas um bom sopapo no guarda para sacramentar a fuga). Seja em seu dom para a subversão, seja na crítica ácida a sociedade, ou ainda, na liberdade tomada com a palavra e as estruturas, os reflexos do modernismo estão presentes em sua obra, querendo o autor ou não. Assim sendo, para completar o hall de comparações feitas alguns parágrafos acima, um nome do modernismo brasileiro que salta aos olhos é o de Oswald de Andrade, e o que aproxima esses dois autores é a falta de medo de experimentar, o surrealismo espontâneo que brota em suas obras, tanto na quebra da estrutura lógica do texto e na fragmentação que encontramos em um ‘Memórias sentimentais de João Miramar’, quanto na… quebra da estrutura lógica do texto e na fragmentação que encontramos em um ‘A lua vem da Ásia’.
E é essa coragem para experimentar, provocar e desconcertar o leitor – e muitos jornalistas que se arriscaram a entrevista-lo – que faz de Campos de Carvalho um autor impar para a literatura brasileira. A sorte das novas gerações é que o silêncio em torno de sua obra acabou na metade da década de 1990, quando, em 1994, o crítico literário Carlos Felipe Moisés escreveu um artigo para o Jornal da Tarde, de São Paulo, com o título ‘A ficção marginal de Campos de Carvalho’, onde ele fazia um apanhado de toda a obra do autor. Depois foi a vez da Editora José Olympio tentar tira-lo da margem editorial no ano de 1995, dando a luz à uma ‘Obra reunida’ do autor.
Por fim, uma amostra de como Campos de Carvalho levou até as últimas consequências seu excêntrico senso de humor: o jornalista Ciro Pessoa nos traz uma anedota sobre a morte do autor onde, após ter um mal-estar súbito que resultaria em sua morte, numa de suas caminhadas durante a tarde, ele teria dito para a sua esposa que o motivo de estar passando mal era por causa de um sorvete que ele havia tomado. Levando em conta o universo louco, nonsense e surreal criado por ele, provavelmente tenha sido isso mesmo que aconteceu.
Texto escrito originalmente como trabalho para a disciplina de Literatura brasileira no período pós-guerra, do curso de Licenciatura em Letras da UFSCar.
Menino você brilha! <3 Sabe que eu amei esta resenha né? Dignifica perfeitamente este livro fantástico! Parabéns Ed!
Ana muito obrigado pela leitura. Primeira resenha que eu escrevi pro site há mais de um ano atrás.
Pingback: Campos de Carvalho: Existencialismo, guerra, morte e uma vaca de nariz sutil. Por Edmar Neves | LOID