Aline Bei: não tenho mãe

'La Libertad', de Egon Schiele

‘La Libertad’, de Egon Schiele

meu rosto ainda estava no asfalto

na queda tem esse momento

pequeno

em que a gente quase se acostuma com o chão, a gente quase mora no lugar onde caímos

também na pessoa em nós que caiu

como se a queda fosse irreversível

como se a vida, agora, se limitasse a isso, a esse

beijo.

o asfalto

é um lugar de pisar e carros, um lugar de passagem, não parece natural um rosto ali, Imóvel.

ou morreu

ou a queda está doendo demais

até que eu me levantei

devagar

sentindo falta de algo no corpo.

não era a pele

nem o sangue

esse sangue que fica como um rio pela gente, já pensou? no quão líquido somos, água, sangue e nada vaza, a Pele de barreira e ainda por cima é macia, ainda por cima ela é útil

no amor.

depois da queda

meu plano de virar uma grande escritora subitamente ficou pra depois.

cair é uma pausa

no movimento da vida, de repente uma consciência

se não da própria morte

talvez da fragilidade que nos é inata

e no turbilhão dos dias a gente se esquece dela.

parecemos tão fortes lutando pelo que queremos, pelas pessoas que amamos, pagamos nossas contas, planejamos viagens, um filho, e de repente lembramos,

de repente entendemos que

somos feito de vidro.

 

-tá tudo bem?- perguntam, me ajudando a levantar.

sim. – respondo esgotada.

-vou chamar uma ambulância.

não, não precisa. tá tudo bem, não foi nada grave. eu vou pra casa agora.

-mas seu rosto. tá bem machucado. vem, a gente te ajuda.

não precisa, é sério. eu moro logo ali. obrigada. tá tudo bem.

 

e me lembrei de um dia

em que eu caí assim também, de rosto, minha mãe estava perto, ela me puxou pelo braço tão rápido

que doeu o ombro em cima da dor

do rosto.

 

-filha, filha. – ela dizia agitada.

 

me colocou no peito num abraço, aquela correntinha de pássaro que ela tinha

grudou na minha bochecha

meu suor, o dela,

ficou a marca do pingente em mim.

 

-tô bem, mãe. – eu disse. – foi só um susto.

 

e ela chorando. me vi ali, com 5 ou 6 anos,

consolando minha mãe da minha queda, acalmando ela da minha dor, eu que sempre fui a mãe da minha mãe.

ela nunca soube

cuidar de ninguém.

mas tentava, desesperada cuidar, às vezes ficava até violenta cuidando,

fazendo o curativo com força. ela se aborrecia rápido,

gritava Eu tenho tanta coisa pra fazer e colocava as mãos na cabeça.

esse era o seu jeito de lidar com o Susto, como uma menina.

então eu passei a evitar machucados,

tomava um cuidado absurdo como se minha vida fosse dentro de uma loja de cristais.

não queria ver minha mãe gritando, evitava contar as histórias das outras crianças que podiam assustá-la,

como quando a mãe da sofia morreu

e a sofia não comia mais

ficou tão magra que ia pra escola de cadeira de rodas.

não contei nada

nada de trágico para os ouvidos de mamãe. quando chegava de Noite

ela ficava mais macia.

a noite tinha um efeito devastador de calmaria pra minha mãe, sempre foi assim. ela nunca brigou com ninguém à noite,

ela ficava doce,

compreensiva, até bem humorada, até menos dona

de si. vulnerável à cama, ao peso dos lençóis, ela finalmente se calava, cedia, de noite você podia contar pra ela até de 1 medo.

calmamente ela te ouviria

dizendo tá tudo bem

e um abraço, um abraço também seria bom.

mas quando amanhece o dia

a calmaria passa

a calmaria é como se fosse um sonho que tive ou quem sabe era ela quem estava sonhando

e por isso me tratou assim, como aquelas mães nos filmes,

que cantam pra fazer o filho dormir, a mão delicada passeando pela testa do menino.

e assim eu sigo

tentando não me machucar

evitando qualquer perigo

pisando em

ovos tenho conseguido

me equilibrar com o passar dos anos, é pena que hoje eu tenha caído assim desprevenida

nem me lembro como. fico tentando lembrar

estava tão lúcida antes da queda

como posso esquecer de tudo assim, de repente? a memória. a memória tem vida própria

ela é um anão

morando na gente

entre a cabeça e o peito, mais ou menos na altura garganta.

 

tem certeza que não precisa de ninguém pra te levar em casa?

tenho, obrigada. eu já vou indo.

 

pego minha bolsa e a chave que foram parar do outro lado da calçada. agradeço com um leve aceno de cabeça os olhares  preocupados dos desconhecidos ali

na rua

eles formavam uma pequena plateia.

olhavam com pena

minha volta pra casa, espero que a mãe esteja no mercado

ou que o machucado seque

com o vento,

ventava bastante,

aquele algo a menos no corpo ainda latejava em mim.

alinebei

Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei 

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2 comentários sobre “Aline Bei: não tenho mãe

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