meu rosto ainda estava no asfalto
na queda tem esse momento
pequeno
em que a gente quase se acostuma com o chão, a gente quase mora no lugar onde caímos
também na pessoa em nós que caiu
como se a queda fosse irreversível
como se a vida, agora, se limitasse a isso, a esse
beijo.
o asfalto
é um lugar de pisar e carros, um lugar de passagem, não parece natural um rosto ali, Imóvel.
ou morreu
ou a queda está doendo demais
até que eu me levantei
devagar
sentindo falta de algo no corpo.
não era a pele
nem o sangue
esse sangue que fica como um rio pela gente, já pensou? no quão líquido somos, água, sangue e nada vaza, a Pele de barreira e ainda por cima é macia, ainda por cima ela é útil
no amor.
depois da queda
meu plano de virar uma grande escritora subitamente ficou pra depois.
cair é uma pausa
no movimento da vida, de repente uma consciência
se não da própria morte
talvez da fragilidade que nos é inata
e no turbilhão dos dias a gente se esquece dela.
parecemos tão fortes lutando pelo que queremos, pelas pessoas que amamos, pagamos nossas contas, planejamos viagens, um filho, e de repente lembramos,
de repente entendemos que
somos feito de vidro.
-tá tudo bem?- perguntam, me ajudando a levantar.
–sim. – respondo esgotada.
-vou chamar uma ambulância.
–não, não precisa. tá tudo bem, não foi nada grave. eu vou pra casa agora.
-mas seu rosto. tá bem machucado. vem, a gente te ajuda.
–não precisa, é sério. eu moro logo ali. obrigada. tá tudo bem.
e me lembrei de um dia
em que eu caí assim também, de rosto, minha mãe estava perto, ela me puxou pelo braço tão rápido
que doeu o ombro em cima da dor
do rosto.
-filha, filha. – ela dizia agitada.
me colocou no peito num abraço, aquela correntinha de pássaro que ela tinha
grudou na minha bochecha
meu suor, o dela,
ficou a marca do pingente em mim.
-tô bem, mãe. – eu disse. – foi só um susto.
e ela chorando. me vi ali, com 5 ou 6 anos,
consolando minha mãe da minha queda, acalmando ela da minha dor, eu que sempre fui a mãe da minha mãe.
ela nunca soube
cuidar de ninguém.
mas tentava, desesperada cuidar, às vezes ficava até violenta cuidando,
fazendo o curativo com força. ela se aborrecia rápido,
gritava Eu tenho tanta coisa pra fazer e colocava as mãos na cabeça.
esse era o seu jeito de lidar com o Susto, como uma menina.
então eu passei a evitar machucados,
tomava um cuidado absurdo como se minha vida fosse dentro de uma loja de cristais.
não queria ver minha mãe gritando, evitava contar as histórias das outras crianças que podiam assustá-la,
como quando a mãe da sofia morreu
e a sofia não comia mais
ficou tão magra que ia pra escola de cadeira de rodas.
não contei nada
nada de trágico para os ouvidos de mamãe. quando chegava de Noite
ela ficava mais macia.
a noite tinha um efeito devastador de calmaria pra minha mãe, sempre foi assim. ela nunca brigou com ninguém à noite,
ela ficava doce,
compreensiva, até bem humorada, até menos dona
de si. vulnerável à cama, ao peso dos lençóis, ela finalmente se calava, cedia, de noite você podia contar pra ela até de 1 medo.
calmamente ela te ouviria
dizendo tá tudo bem
e um abraço, um abraço também seria bom.
mas quando amanhece o dia
a calmaria passa
a calmaria é como se fosse um sonho que tive ou quem sabe era ela quem estava sonhando
e por isso me tratou assim, como aquelas mães nos filmes,
que cantam pra fazer o filho dormir, a mão delicada passeando pela testa do menino.
e assim eu sigo
tentando não me machucar
evitando qualquer perigo
pisando em
ovos tenho conseguido
me equilibrar com o passar dos anos, é pena que hoje eu tenha caído assim desprevenida
nem me lembro como. fico tentando lembrar
estava tão lúcida antes da queda
como posso esquecer de tudo assim, de repente? a memória. a memória tem vida própria
ela é um anão
morando na gente
entre a cabeça e o peito, mais ou menos na altura garganta.
–tem certeza que não precisa de ninguém pra te levar em casa?
–tenho, obrigada. eu já vou indo.
pego minha bolsa e a chave que foram parar do outro lado da calçada. agradeço com um leve aceno de cabeça os olhares preocupados dos desconhecidos ali
na rua
eles formavam uma pequena plateia.
olhavam com pena
minha volta pra casa, espero que a mãe esteja no mercado
ou que o machucado seque
com o vento,
ventava bastante,
aquele algo a menos no corpo ainda latejava em mim.
★★★
★★★★★★
show
Maravilhoso seu texto! Parabéns! Lerei outros..