a patti estava fazendo uma mala
pequena
é provável que dessa vez a viagem seja curta.
pela janela do apartamento
vazava um lampejo de sol que se desenhava na parede.
a patti ficou olhando
tentando entender de onde vinha a luz, se tinha algum espelho, algum prédio
espelhado na frente, aquilo era
nova york.
no parque ali debaixo
crianças e cachorros brincavam,
gritavam, mas
estava tudo bem, é só que a diversão quando grande precisa disso,
precisa ser colocada pra fora do corpo, se não
a pessoa pode até explodir. as mães
conversavam umas com as outras
sempre de olho na correria atrás da bola, da bolinha,
pessoas e animais brincando juntos deixam claro
o quanto é frágil o ser humano.
pra patti ali no apartamento, ocupada com a mala,
não tinha a cena do parque
com seus personagens desconhecidos. ela preenchia os sons que subiam o vidro
com recortes da própria infância.
lembrou da mãe
na porta da cozinha chamando pro almoço
e a patti perdida
no bosque do quintal
na verdade um punhado de mato
mas pra ela criança dava pra se perder ali profundamente, dava até não voltar
nunca mais ou
só voltar quando a mãe chamasse pro almoço, a patti tinha um apetite e tanto.
quando entrava pra cozinha,
a mão da mãe que não estava fumando
deslizava pelo cabelo da filha
num carinho breve
como a vida.
esse gesto ficou guardado pra sempre
no topo da cabeça de patti, ela que gosta tanto de colecionar objetos,
um gesto também é 1.
a patti não sabia
se era ela quem passava rente pela mão da mãe forjando o toque
ou se era a mãe que sutilmente esticava o braço
pra sentir a textura dos cabelos
da filha
(no fundo um pouco dos dois).
a patti
seguiu fazendo a pequena mala
até que o Robert apareceu.
cochichou qualquer coisa no ouvido dela, podia ser um:
quer que eu te leve até a estação?
ou talvez fosse algo melhor, talvez fosse um insight
sobre algum poema de Rimbaud.
a epifania poderia ter acabado de acontecer pro Robert,
pelo jeito que o vento entrou no quarto movendo ali só o que era leve
e
de repente as coisas se encaixaram, o verso e a vida, de repente tudo fez sentido.
a patti sorriu. o corpo dela estava mole, as costas curvadas como se ela estivesse com sono, como se tudo aquilo estivesse acontecendo numa manhã de sábado.
então o Robert puxou a mão da patti
para um abraço
ela foi
sem nenhuma resistência.
primeiro aconteceu um encaixe de pescoço entre eles
depois uma dança
sem música, ali no canto da sala.
as crianças e os cachorros ainda gritavam,
já o parque estava silencioso, recebendo isso, um dia de gente e mães.
e quem? afinal é a mãe de um parque.
a rua,
a rua é a mãe de tudo o que mora nela
até ela virar outro nome
mas no fundo e tirando o nome
o mundo é uma mesma rua.
quase pronta
a mala da patti ficou assistindo a dança
quem olhasse de longe pensaria que era uma vitrola, aquele tipo específico de vitrola que de costas ou fechada lembra muito uma mala.
eles dançavam como anjos,
comecei a cantar uma valsa pra acompanhar a dança muda.
até que o Robert soltou a patti, não sem antes
girá-la.
ela ficou no ar por um tempo, não esperava parar aquilo tão cedo,
pareceu envergonhada depois que o Robert a soltou.
foi muito bonito
ele tomar ela pelos braços daquele jeito, muito inesperado e mesmo assim
ela aceitou tão bem.
ele pegou a carteira na cômoda
o sol bateu no olho dele, deixou verde,
e saiu pra comprar cigarros.
mandou um beijo no ar pra patti que ele fez chegar até ela soprando com as mãos. eram amigos,
deu pra perceber ali quando ele saiu.
ela escolheu levar o livro de sempre
illuminations, não arriscava muito nesse sentido, carregar o mesmo livro nas viagens tem lhe dado sorte,
ela tem conhecido os lugares que sempre quis
e os lugares se mostravam exatamente como ela via nos mapas, talvez só um pouco mais distantes entre si.
o estado de espírito também alterava algumas coisas
quando estamos nos sentindo bem a pior das cidades pode até parecer média, pode até ser levada com um certo humor. viajar é de dentro pra fora, invariavelmente.
a patti fechou a mala.
deu uma última olhada no apartamento e
saiu, agora sua vez de tomar a rua.
a porta guardou as 2 partidas, a da patti um pouco mais demorada pra voltar, mas a porta
vai ter que se acostumar com isso, com a espera.
a patti passou na frente do parque
deu uma boa olhada nas crianças
e nos cachorros
eles pareciam úmidos
de suor
mas não tão úmidos quanto o gesto
do carinho casual da mãe
escorrendo pela memória de patti
aquelas mãos
uma livre
a outra segurando o cigarro, junto com o antebraço e o cotovelo,
essas mãos que nunca mais serão vistas
mãos que descansam em paz num cemitério em nova jérsei
BERVELY SMITH
ela se lembrou do túmulo,
bervely smith daria um belo nome de rua.
★★★★★★