3 poemas de Raquel Nobre Guerra

 

'The Lantern Bearers' (1908), de Maxfield Parrish

‘The Lantern Bearers’ (1908), de Maxfield Parrish

Não foi preciso muito para que a cidade
começasse a tomar o veneno do milho
e fechasse tudo. A Palmeira, o Estádio,
a Barateira, até os grandes candidatos
à última cadeira ficaram por sua conta.
Lisboa é uma azinhaga tristíssima.

Talvez queiram acabar com a música
as doenças tropicais, os sonhadores.
Fechá-los no foyer servir-lhes faisão
e orquídeas negras, preveni-los de que
no sopé da lixeira haverá sempre lugar
para mais uma mantinha.

Que dias estes em que o amor passou
para um tempo que não mexe.
Vida em troca de indícios
de que apenas depois percebemos
a dimensão furiosa do vazio.

Grandes clássicos da vida para quem acha
que por ter lido a Rayuela foi ao cu ao profeta.

Homem, se tiveres sorte saberás
que nunca foi preciso namorar Platão
para saber que o cocheiro vai louco e num só pé.

É importante esta narrativa agigantada de referências
para que tudo feche literalmente com o porteiro da discoteca.

E que não sejamos menos aqui, que ninguém nos ouve,
contra o jogo de não termos conseguido melhor:

I want to fuck everyone in the world
I want to do something that matters

Ficas a dever-me uma.

 

Objectos restantes do nosso último encontro:
o tubo de tabaco Lucky Strike (seguramente)
e a pontuada consoante «só».
Coisas sem significado que se deixam ficar
como um piropo sem resposta.

Emprestei-me à ideia do erro trágico poder ser belo
rendi-me ao bandido, acomodei-me entre camas
talvez assim nos percamos irremediavelmente.

Mas que farei eu deste lado do muro?

Mover-me na medida da tua distância
para as habituais ratoeiras de estante.
A casa aos baldões porque me deixaste
os explosivos mas não a farmácia
os primeiros socorros e o «Ser e Tempo»
que, quando muito, me alinha um átomo.

Nenhum clássico alternativo ao homem
mudou alguma vez o fuso do mundo.
A malha cai, o gajo escapa
é uma rosa, senhor, de plástico.

Que direi eu deste lado da história?

Que tudo há-de ir para o escuro se até esta luz,
nossa única saúde, foi fechada à perna.

Se pudesse chegar à expressão certa
mentir-te com Deus e Rock & Roll,
perdão, uma pequena elipse,
porque não não foi a flor desse romântico inglês
nem o homem de Porlock mais o paraíso coitado,
quem nos baralhou tão perto de um final feliz.

Foi a noite do teu rosto na noite do meu rosto.

Assim.

Sou até capaz de enunciar as razões
ratazanas da mais afiada prosa roendo
até que o resultado seja outro.
Mas não consigo melhor que isto:
duas beatas tuas encolhidas na cinza.

Pertencem-me para sempre esses cadaverzinhos
que fumaste depois de me beijares ao alto
e arrastar a voz a um amo-te
com a força da luz extrema.

Uma vez ofereceste-me bananas
flores para ti, vinha escrito.

Percebo bem a inutilidade da poesia
como de resto a literatura que finge
a mínima desordem dos mundos
o que importa é fingir uma pose.

Explico.

O mais extremo acto de egoísmo:
ter a dimensão própria da caricatura
e endossá-la aos outros.

O que toca a afinal e a quem, que sejamos sinistros?
E o amor um candeeiro de rua frouxo que à nossa passagem se desliga.

Dou conta dos perecíveis.

De ti sabe-se que tinhas um jeito especial
de dar bailinho aos deuses com as mãos
enquanto eu de nariz espetado nesse cima
preferia o abandono onde nada me faltava.

Entendo agora que as bananas dormem com as tuas mãos debaixo da terra e que o nosso amor flutua ainda na calcite.

O mundo, seja como for, cabe nisto.

E eu corro para casa com um bouquet de flores mas tu não estás.

Nada que não estivesse previsto,
heartbreakers, love comes in spurts.

raquel-nobre-guerra

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4 comentários sobre “3 poemas de Raquel Nobre Guerra

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