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desprevenida numa quinta à noite
comecei a assistir o documentário do kurt cobain.
logo nos primeiros minutos de filme
a mãe dele disse que
Não estava apaixonada quando se casou.
– ele era meu amigo, mais do que qualquer coisa. e usava uma franja que, francamente, não ficava boa em ninguém.
(por trás aparece o pai do kurt numa filmagem antiga
rindo na cozinha
sentando em
cadeiras, a franja lá,
a franja era só o que eu via)
ela disse que se casou porque
gostava dele.
era jovem, pensava que gostar era como
Amar.
é dito tanto sobre o amor nos filmes, nos poemas. mas como diferenciar no peito o que é amor e o que é medo
de ficar sozinho.
ela deve ter pensando: é bom estar com ele. é bom
na maior parte do
tempo,
nos darmos bem pode ser o suficiente.
quando eles finalmente se casaram
ela quis ficar grávida logo,
era esse o objetivo de casar, 1967,
– não sei por que eu casei com o pai do kurt, – ela repetia
como se uma força maior a tivesse impulsionado pra isso,
a força do Kurt querendo nascer.
ele
foi uma criança agitada.
–o kurt estava sempre ocupado. – a mãe disse no filme
e eu me lembrei da minha
infância. não sentia tédio. me ocupava bastante também
com brinquedos, com as músicas no rádio, com o meu próprio corpo, os sons que saiam dele, as pintas que nasciam.
enquanto isso
o kurt não dava sossego. o menino é hiperativo, diziam, então a mãe decidiu marcar uma consulta.
– doutor, meu marido
gosta de silêncio. e meu filho
não faz silêncio.
– uhum. – resmungou o médico
e prescreveu umas pílulas.
– o kurt ficou muito esquisito depois de tomar remédio. – a mãe disse no documentário
e depois não falou mais nada sobre isso. cortou a cena para uma filmagem da família no jardim
(aquela casa lembrava a da minha vó,
o sofá marrom,
o tamanho da sala, os tios sentados sem camisa)
o kurt mandava beijos pra câmera, virava e mandava beijos,
como faria qualquer criança que não estivesse com sono.
até que
ele aprendeu a tocar guitarra
sozinho
e desenhava bonecos corpudos
cheios de
alma, bonecos que eu não saberia imaginar
com rostos retangulares e um olhar parecido com o de alguém que já existe.
– o kurt precisava nascer – a mãe disse, profética.
pra 27 anos depois
ele não aguentar mais e
desistir deixando
Francis, uma bebê a cara dele,
esperando.
– papai, papai, – ela devia chamar, se apoiando nas paredes do corredor.
-o papai não vai chegar, – a Courtney diria. – o papai
agora é um anjo.
ela que disse pro kurt
que ele era uma mistura de led zeppelin, leonard cohen, beatles, menos bob Dylan. bob Dylan conta histórias de um jeito
que você não faz.
– papai, papai, – a francis seguiria chamando, inconsolável.
quem pode medir a dor de um bebê?
se um bebê
chora profundamente por tudo, a chupeta no chão, o sono, a morte. bebê não sabe o que é morte, dizem. mas convive com ela, é obrigado a conviver,
até que um dia o bebê para de chamar quem ele perdeu,
compreende que não Adianta,
vira um adulto
e dirá seco
quando perguntarem do pai:
-ele morreu há tanto tempo.
voltará pra casa com isso na cabeça. pegará do armário uma caixa de fotos.
olhará devagar centenas delas
se reconhecendo ali, no bebê que ela foi,
também nos olhos do pai tão azuis.
– o kurt precisava nascer, – a mãe dele repetia, incansável.
se o kurt não tivesse sido
ninguém em especial, um anônimo que caminha pela rua, que tem o seu emprego, que vai ao cinema,
será que ela diria o mesmo?
– por que vocês são o Nirvana? – perguntou o entrevistador.
– porque não somos o Aerosmith. – respondeu o baixista.
existe isso, de precisar nascer? se existe, então quando uma pessoa precisa nascer ela simplesmente Nasce, independente das circunstâncias?
o filho de Charlote Salomon, por exemplo,
a pintora que morreu grávida num campo de concentração. esse filho
não precisava nascer?
não seria um astro quando crescesse? um grande empresário? um sujeito de bom coração?
quem, afinal, prevê o futuro de um ser que ainda não existe, ele mesmo?
-o kurt precisava nascer.
então quer dizer que existe vida
antes da vida
já que uma pessoa que nem nasceu tem a força de se sentir predestinada
e faz
dois seres humanos que mal se amavam
ficarem juntos pra ela nascer.
– ele tinha que nascer. – escuto algumas mães dizendo,
especialmente as que tiveram uma gravidez de risco, seja por motivos externos como uma guerra,
seja por motivos internos como um mioma.
ele tinha que nascer, elas dizem de olhos molhados.
mas se uma mãe
sofre aborto, depois fica grávida de novo e
sofre
aborto de novo, até que finalmente ela consegue ter um bebê:
esse bebê que nasceu
é o mesmo que não conseguiu nascer todas as outras vezes? o corpo não é, mas
e a alma, é a mesma? Lutando pra existir.
ou será que alma e corpo são uma coisa única? e quando morre 1
morre o outro, simultaneamente.
e se a alma for feita de algo perpétuo,
pra onde ela vai depois que morre o corpo, pro céu?
você acredita em
céu?
acredita mesmo que lá em cima muito em cima
tem um mundo paralelo que não cai nas nossas cabeças, pelo contrário,
flutua sobre nós
nos observa e nos julga
como se estivéssemos num gigantesco programa de tv?
e as almas ruins
queimam no fogo
com chifre e rabo,
por que será que o mal está sempre associado a características animais?
sendo que as guerras são feitas por homens, não touros.
você acredita mesmo que as pessoas ou são boas ou são más?
acha que é possível reduzir indivíduos
em classificações desse tipo e assim
encaixa-los em lugares específicos, inferno, céu, parecido com as gavetas de um cemitério?
você acredita em
deus? a imagem de um homem
branco e
velho
como tantos homens
brancos e velhos que tem nos
governado (os quadros de jesus pregados na parede do quarto da minha vó
não me deixavam dormir à noite. hoje você vai dormir na vovó, minha mãe me dizia. não, não, eu implorava, minha mãe achava que
eu não gostava de
vó.
são os quadros, uma vez eu disse
baixinho. são os quadros, mãe,
mas a minha mãe já estava dormindo)
ou a ideia de deus é fruto de um desespero
por não sabermos nada
sobre estarmos vivos nesses corpos
exatamente nessa época e de repente
não estarmos mais?
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
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O mal sempre associado a um animal. Medo. Assim também as bruxas são sempre velhas?repulsa