eu quis tanto uma vitrola. assistia filmes sobre literatura e jazz
e a vitrola estava sempre lá, no quarto do personagem principal, tocando um disco que nunca se sobressaia ao ambiente, pelo contrário,
se misturava
e se tornava algo tão natural quanto o Ar.
aquilo
fazia parecer que a vida doía menos nas pessoas do filme, a música se ajustava perfeitamente aos passos delas
entrando em lugares, restaurantes, cafés, cumprimentando velhos conhecidos
ninguém ali era indesejado ou sentia inveja,
tudo simplesmente fluía, os espaços, as
pessoas.
mas agora que eu tenho uma vitrola (ganhei de aniversário e
faz um tempo que tenho)
mal ligo.
é porque ela não fica perto da tomada, eu penso, tentando me
Enganar, é porque eu não tenho uma mesa,
não cabe uma mesa apropriada aqui nesse apartamento minúsculo.
o pior
é que eu tive que colocar meus discos em cima da vitrola, fazer uma pilha deste tamanho,
aí você imagina o trabalho que eu tenho pra encontrar 1
eu preciso espalhar todos pelo chão já que claro, o disco que eu quero nunca está no começo da pilha
geralmente
está por último.
pra ligar a vitrola
eu preciso colocar ela em cima da cama, tirar os travesseiros, tirar o meu cachorro
ou botar ele pro lado, pesado e preguiçoso como é,
querendo me morder toda vez que o levanto, é como se ele dissesse tira
a mão de mim,
pra então finalmente eu ouvir
o disco,
que termina
estranhamente rápido em
5 ou 6 músicas.
além do mais
ouvir um disco em casa
é tão diferente de ouvir num filme, no filme tem um contexto que
me interessa muito mais do que a minha própria vida,
não me leve a mal.
sou grata pelo que tenho, mas
Cansa, entende? ser a mesma pessoa pela vida inteira.
as pessoas mudam, você me diria.
é verdade, mudam,
só que não o suficiente para as minhas expectativas de mudança,
as vezes eu gostaria de saber como é ser um homem negro de 2 metros
jogando basquete nos estados unidos e isso
é impossível
dentro da realidade de quem eu sou.
não a toa há tantos atores e
suicidas por aí, às vezes até atores-suicidas.
quando acabam as 5 músicas do lado A
eu tenho que Parar de lavar o banheiro, por exemplo,
pra virar o Disco pro lado B,
secar a mão, o pé,
que é bem possível de escorregar nesse chão que parece um lago e a queda,
ah eu já sonhei com a minha queda tantas vezes,
tem dia que ela se parecesse com a Morte
tem dia que ela é um corte profundo na cabeça me deixando demente, os médicos não conseguem me salvar.
nunca mais poderei ouvir música e entender o que estou ouvindo
nunca mais poderei escrever.
– como ela ficou desse jeito? – perguntariam pro infeliz que estivesse cuidando de mim, provavelmente um enfermeiro.
– ela caiu no banheiro molhado, foi virar o disco que estava no quarto e
caiu.
– que tragédia. – diriam. – uma coisa que daria pra evitar,
não é mesmo?
parece evitável, claro, seca o pé, coloca um chinelo. mas é fácil falar que uma coisa é evitável depois que ela já aconteceu.
essa minha vitrolinha azul. era um grande sonho, ter uma.
agora que ela está aqui
é só mais um objeto
fechado
quase que o tempo todo. quando eu fui para a Itália
foi assim também.
eu tinha um sonho
– quero ir pra Toscana – eu dizia. – tem coisas que
só acontecem por lá.
juntei meu dinheiro por
Anos.
quando fui,
logo no primeiro dia, eu estava de óculos escuros e chapéu, um Dobermann
segurado por uma dona que não parecia saber o que estava fazendo,
quase me atacou.
se ele me atacasse
seria um cavalo entrando mim, eu morreria em segundos
numa rua
sem saída
meu corpo despedaçado no chão.
– é brasileira? é,
Brasileira. – os italianos checariam
e a burocracia de me mandar morta de volta pra casa.
ainda bem que o cachorro não me pegou. percebi que ele queria que eu corresse mas eu não corri, então ele
não me pegou.
no dia seguinte, já mais calma, eu fui conhecer a torre de pisa.
de perto, por dentro,
e de longe comendo uma pizza na hora do almoço, um calor dos infernos.
ela é muito torta. realmente muito bonita e
torta
a impressão que dá é que ela vai desmoronar a qualquer instante e isso não passa. lá dentro, subindo as escadas pra chegar no topo,
dá tontura como se a pessoa estivesse de pé numa roda gigante.
é bonita, a torre de pisa. Original,
ela nasceu do erro de um arquiteto
e se não fosse pelo erro
ela não seria tão famosa.
segui comendo minha pizza
não sem certa melancolia de estar observando a torre tão de perto, a gente fica um pouco triste quando finalmente consegue o que queria,
a gente fica pensando E Agora? o que mais.
então minha mãe me ligou.
sua voz parecia a de alguém que estava tão próximo de mim quanto o garçom, o telefone é algo mágico.
–oi filha. como está tudo aí?
-triste e lindo, e claro muito menos expressivo do que eu imaginava.
a realidade e a gente se acostumando com ela, né mãe.
não importa quão boa
ou ruim ela seja
estranhamente a gente se acostuma.
a senhora não acha isso
Extraordinário?
– o que você disse, filha? a ligação tá cortando.
– nada não. só que está tudo bem por aqui.
– estou com saudades, querida. se cuide, hein.
um beijo.
também com isso a gente se acostuma
com a falta que alguém nos faz
e também nos acostumamos com ter a Consciência de que nos adaptamos a qualquer situação, nos acostumamos tanto ao ponto de
perder essa consciência
até que tenhamos o insight mais uma vez
percebendo que viver
sempre é diferente de
sonhar em viver. sonhar é Longo
viver o sonho é
gozo, com aqueles minutos estupefatos e
pronto, rapidamente os casais voltam a se odiar.
ganhar um Oscar deve ser mais ou menos assim.
na primeira noite ninguém dorme, amigos e primos distantes telefonam dizendo parabéns, pensando um pouco neles também, nas oportunidades que podem surgir pra eles a partir de Você.
na terceira noite
é um pouco mais fácil, o frio na barriga é quase um eco.
na quinta noite você já se lembra mais daquele encontro que terá amanhã do que do seu aplaudido discurso
e quando passa 1 ano
sua estatueta espirra
com o pó na prateleira que você gastou uma nota pra fazer só pra apoiá-la e agora
nem pano,
então por que? vende-se tão bem essa ideia de
Felicidade,
nas propagandas de fim de ano,
nas fotos de
revista,
se acabamos sempre voltando para aquele estado
neutro, conseguindo coisas, perdendo outras,
e se acostumando com o cenário de tal forma que
ele é você.
(cai o pano. fim do primeiro ato)
★★★★★★
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