“O que é invisível mas dói”, cinco poemas de Orides Fontela

 

Cansa-me. A chaga inumerável
de mim cintila, sem palavras, úmida
fonte rubra do ser, e tédio
de prosseguir, inabitada, viva.

Prosseguir. Ai, presença ignorada
do ser em mim, segredo e contingência,
espelho, cristal raso, submerso
na eternidade do existir, tranqüilo.

Cansa-me ser. Ai chaga e antigo sonho
de áureas transmutações e vidas outras
além de mim, além de uma outra vida!

Mas amolda-me o ser. Prende-me a essência
(raiz profunda e vera) a imutável
condição de ser fonte e ser ferida…

27.7.64

INICIAÇÃO

Se vens a uma terra estranha
curva-te

se este lugar é esquisito
curva-te

se o dia é todo estranheza
submete-te

— és infinitamente mais estranho.

 

 

DESTRUIÇÃO

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.

A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.

A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.

 

ADIVINHA

O que é impalpável
mas
pesa

o que é sem rosto
mas
fere

o que é invisível
mas
dói

 

DESAFIO

Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência.

 

★★★★

Orides Fontela nasceu na cidade de São João da Boa Vista (SP), no dia 21/04/1940. Em 1946, educada por sua mãe, começa a escrever poemas. No ano de 1951, cursa o Ginásio e, em 1955, a Escola Normal de São João da Boa Vista. Seus primeiros versos são publicados em 1956 no jornal “O Município” daquela cidade. Muda-se para São Paulo (SP), em 1967, onde ingressa no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo – USP. Estréia, em 1969, com o livro de poemas “Transposição”, publicado com a ajuda do professor e crítico Davi Arrigucci. Em 1973, lança “Helianto”. Em 1983 ?publicado seu terceiro livro de poemas, “Alba”, que recebe o Prêmio Jabuti. Trabalha como professora primária e bibliotecária em várias escolas da rede estadual de ensino. Em 1986, ? lançado “Rosácea”. O escritor, poeta e crítico Augusto Massi reúne, em 1988, toda a obra anterior da poeta no livro “Trevo”. Em 1996, o livro “Teia”, reunião de toda a sua obra, recebe o Prêmio concedido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Arte. Tentando superar suas dificuldades financeiras — havia sido despejada do apartamento onde vivia — vai viver na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João daquela capital. De personalidade difícil, isola-se cada vez mais dos amigos, morrendo em 02/11/1998, num sanatório em Campos do Jordão (SP). Seu livro, “Poesia Reunida”, lançado em 2006.

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