Carnaval
Deus largado pelas ruas de Recife
não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu
será que Deus também tem dúvidas?
nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
são quatro dias
que Deus não tá nem aí
aí, na quarta-feira de cinza
Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo
– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)
★★★
olhei para o passado
as folhas dos calendários
caindo
é preciso plantar cedo sua árvore
pra mais tarde ter uma sombra
que lhe agasalhe
– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)
★★★
fui pra lá e pra cá
55 anos
ando ainda sem
entender nada
inda + agora
que Deus deu
de ombros ao mundo
e o ser humano
deu as costas
às coisas raras
como uma boa risada
– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)
★★★
tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende
tem gente que nem o poste suporta
tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga
e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu
– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)
★★★
fico olhando o mundo
não me sinto bem agora
agora sinto um
desejo
de não estar mais aqui
mas agora que aqui estou
suporto meus
54 quilos
e vários amores que se foram
a vida é um ônibus
vai levando você
o problema é em que parada
nós vamos descer
– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)
★★★★★★
João Flávio Cordeiro da Silva, Miró, é poeta e nasceu em 1960 no Recife. Morou por muitos anos no bairro de Muribeca.Publicou diversos livros de forma independente ou com a colaboração de amigos, entre eles, Quem descobriu o azul anil? (1985), Ilusão de ética (1995), Pra não dizer que não falei de flúor (2004), DizCriação (Andararte, 2012), aDeus (2015) e O penúltimo olhar sobre as coisas (2016), ambas da Mariposa Cartonera. Tem poemas traduzidos para o francês e para o espanhol. É uma das vozes mais inventivas da poesia independente do Brasil
Mariposa Cartonera é um coletivo artístico-editorial sediado no Recife que confecciona livros com capas de papelão reutilizado pintadas e costuradas artesanalmente. Fundada em 2013, difunde a literatura de forma sustentável e alternativa, a partir dos princípios da economia solidária e do comércio justo. Todo papelão utilizado é coletado nas ruas, estabelecimentos comerciais ou adquirido de catadores. O coletivo divulga as ideias do movimento cartonero através de oficinas e cursos por todo país.
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