Cinco poemas de Miró da Muribeca

 

Carnaval

Deus largado pelas ruas de Recife
não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu

será que Deus também tem dúvidas?

nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser

são quatro dias
que Deus não tá nem aí

aí, na quarta-feira de cinza
Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo

– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)

 

olhei para o passado
as folhas dos calendários
caindo

é preciso plantar cedo sua árvore
pra mais tarde ter uma sombra
que lhe agasalhe

– Poema do livro aDeus (Mariposa Cartonera)

 

 

 

fui pra lá e pra cá
55 anos
ando ainda sem
entender nada
inda + agora
que Deus deu
de ombros ao mundo
e o ser humano
deu as costas
às coisas raras
como uma boa risada

– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)

 

tem gente que nunca andou de bicicleta
mas sabe pedalar a sua vida
tem gente quem fuma cigarro e morre de câncer
antes de quem fuma maconha
tem gente que diz bom dia
e do nada morre à tarde
tem gente que nunca foi ao cinema
e sua vida virou filme
tem gente que compra carros novos
e morre atropelado
tem gente que pensa que é moderna
e é primata até dizer bosta
tem gente que se falta luz
nem um candeeiro acende

tem gente que nem o poste suporta

tem gente que no bar fala demais
e esquece de pagar a conta
tem gente que nem a conta paga

e os dinossauros nunca souberam
que o homem existiu

– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)

 

 

fico olhando o mundo
não me sinto bem agora
agora sinto um
desejo
de não estar mais aqui

mas agora que aqui estou
suporto meus
54 quilos
e vários amores que se foram

a vida é um ônibus
vai levando você
o problema é em que parada
nós vamos descer

– poema do livro O penúltimo olhar sobre as coisas (Mariposa Cartonera)

 

 

João Flávio Cordeiro da Silva, Miró, é poeta e nasceu em 1960 no Recife. Morou por muitos anos no bairro de Muribeca.Publicou diversos livros de forma independente ou com a colaboração de amigos, entre eles, Quem descobriu o azul anil? (1985), Ilusão de ética (1995), Pra não dizer que não falei de flúor (2004), DizCriação (Andararte, 2012), aDeus (2015) e O penúltimo olhar sobre as coisas (2016), ambas da Mariposa Cartonera. Tem poemas traduzidos para o  francês e para o espanhol. É uma das vozes mais inventivas da poesia independente do Brasil

Mariposa Cartonera é um coletivo artístico-editorial sediado no Recife que confecciona livros com capas de papelão reutilizado pintadas e costuradas artesanalmente. Fundada em 2013, difunde a literatura de forma sustentável e alternativa, a partir dos princípios da economia solidária e do comércio justo. Todo papelão utilizado é coletado nas ruas, estabelecimentos comerciais ou adquirido de catadores. O coletivo divulga as ideias do movimento cartonero através de oficinas e cursos por todo país.

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