– você já leu o caderno rosa de lori lambi? – perguntei mostrando o livro que não era rosa,
ela olhou pra capa e
pensou um pouco
o tempo dela de abrir a boca e dizer algo numa conversa nunca se prendia a nenhuma ansiedade alheia.
– não – ela disse finalmente. – é bom?
– é brutal. um escritor me perguntou que livro eu gostaria de ter escrito. eu disse esse na Hora.
– você vai gostar de saber então.
– saber o que?
– li que tá pra sair uma antologia completa dos poemas da Hilda, um baita livro (ela fez assim com os dedos pra mostrar a grossura)
temos muita sorte de poder ler essa mulher em língua original.
eu estava um pouco atrás subindo as escadas e
concordei com o que ouvi balançando a cabeça até que
chegamos
no apartamento dela, um prédio antigo
sem elevador.
– eu não posso ficar em pé por muito tempo. – ela me disse
– claro. – respondi
oferecendo o meu
braço e fomos para o quarto
fazia menos de 1 semana que os médicos tinham
revirado a barriga dela,
eu não teria coragem
de revirar aquela pequena barriga
a débora parecia ser feita de
vidro mas eu sabia
que o material de que ela era feita tinha mais a ver com um rio que trás
pessoas do mundo inteiro para vê-lo passar.
como o Tejo, por exemplo, você se senta num degrau de lisboa
e o tejo é portugal inteiro.
na cama dela conversávamos quase deitadas na colcha azul. ela me confessou que gostava de beijar mais do que de sexo
e que passava horas beijando um cara
sem transar.
eu fiquei imaginando o saco do sujeito
ardendo como
o coração de alguém que acabou de morrer e vai doar
o órgão,
tá escrito no documento
esse aqui é doador.
– meu coração batendo no peito de outra pessoa torna essa pessoa um pouco eu? perguntei.
como sempre ela pensou antes de responder.
depois me disse que
Sim,
que em algum nível a pessoa viraria eu.
– o cara que recebe o órgão
deve dizer pra todo mundo que não sente diferença nenhuma do coração antigo pro novo, – eu disse – mas no quarto
sozinho em casa
o cara deve se sentir esquisito a beça.
– receber o órgão de alguém é mais íntimo do que transar. – ela disse.
– ah sim. no sexo também se recebe o órgão de alguém, né? mas passa.
na sala da debóra
num canto perto da janela
tinha um varal
com panos de limpeza pendurados e algumas roupas, na última vez que eu a visitei
não tinha varal nenhum na sala.
ela me contou que a mãe dela
passou uns dias ali no apartamento ajudando no
pós operatório (um dia a débora me disse: se um pai está abandonado num asilo
pegunta pro pai o que ele fez pro filho. não é normal ser abandonado quando se dá amor)
aquele varal na sala
era a mãe dela que veio
e passou, já estava em casa
a quilômetros dali.
quando saímos do quarto
porque a débora queria tomar um café na padaria pra andar um pouco
o varal me confundiu,
por causa dele pensei que a sala começava por outro ângulo.
peguei a minha bolsa e o meu livro
a débora colocou seus óculos escuros no cabelo
como uma tiara.
quando chegamos na padaria
com o meu carro
(ficamos discutindo se íamos a pé ou de carro, decidimos de carro porque ela estava frágil)
eu não vi mais os óculos da débora
tampouco percebi quando ela os tirou,
os óculos sumiram, simplesmente,
como um pássaro que não está mais.
– seu carro é blindado? – ela me perguntou abrindo a porta tão pesada
aquela
era a pergunta que eu não queria,
aquela era a pergunta que
eu não sabia explicar.
– é.
– por que? você é traficante ou algo assim?
– não, é que, como eu posso dizer?
bom,
a minha família pensa em segurança como uma porta trancada pro mundo,
a minha família não acredita no mundo
nem em caminhos tranquilos.
ela sorriu e
não me perguntou mais nada.
disse só que andava a pé no bairro
e que as coisas pareciam tranquilas enquanto ela andava por elas.
sentamos numa mesa na parte de fora da padaria.
se alguém nos desse um tiro
seria curioso quando descobrissem que o carro de uma das mortas era blindado.
– se ela não tivesse saído do carro ou se tivesse saído um pouco depois. – diriam lamentando,
eu mesma
ainda que morta lamentaria
felizmente não houve tiro nenhum. em paz tomamos nosso café com leite conversando sobre poesia
e poetas
que mastigam suas poesias
e que tem muitos leitores por isso, porque mastigam demais os assustos e
as pessoas só precisam engolir sem
pensar,
as pessoas estão cansadas.
então um senhor de boné com olhos alegres
se aproximou da nossa mesa.
disse que estava ouvindo Tudo o que conversávamos e
deu uma gargalhada.
– mas eu vou guardar segredo, – ele disse se afastando. – vou guardar direitinho o segredo de vocês.
tinha álcool
na cara dele
era dali que vinha tanta alegria nos passos e vendo ele desaparecer pela descida da rua
fiquei me perguntando se o que conversávamos eu e a débora
era mesmo aquele papo de poesia mastigada
ou se eu tinha imaginado isso
e no fundo
estávamos falando sobre coisas muito mais
sérias (fiquei com medo de ter contado pra débora sobre eu e a minha prima fazendo carinho no bumbum
uma da outra e nunca mais termos conversado sobre isso, minha prima fingiu que esqueceu ao ponto de me fazer pensar que eu tinha sonhado com nós duas
naquela tarde
na casa vó com tantos terços e velas na sala)
eu ia perguntar
pra ela,
– débora, como você sabe que não estamos nos Inventando? como você pode ter certeza de que estamos falando do que estamos falando?
e se nós formos apenas fruto da imaginação de alguém? pensamos que isso é a vida
mas na verdade estamos presas na vida de outra pessoa,
talvez moramos dentro de um livro
ou de um texto, por exemplo, por que não?
mas a débora
ainda estava com a barriga se recuperando, não seria nada bom mexer também com a cabeça dela então eu
continuei
tomando o meu café
como se eu não tivesse dúvidas.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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