– o centro da cidade não era assim, filha,
era todo iluminado, cheio de
criança brincando na rua. não existia celular, imagina isso. eu passava dias
sem dar notícia pra minha mãe e ela não ficava preocupada
eram outros tempos.
o dia parecia mais longo sem tanto
recurso pra acabar com o tédio. a gente cansava de viver até a hora de dormir,
eu brincava com as minhas irmãs de queimada, de pega-pega, estava sempre com o joelho ralado. minha mãe ficava assistindo a gente
acendia um cigarro
conversava com a vizinha, as pessoas tinham que se olhar nos olhos e conversar.
eu gostava
de conversar sobre tudo. sentava com as minhas irmãs na cozinha
e a gente conversava a tarde toda ouvindo jovem guarda, a porta de casa aberta. eu não tinha medo nenhum de andar na rua, andava aquele viaduto do chá inteirinho
até o bairro do limão. tinha os trombadinhas é claro,
sempre teve.
uma vez eu vi um
roubando a carteira de um velhinho.
ele roubou e saiu correndo
mas uma molecada saiu logo atrás. pegaram o menino, deram socos, chutes, eu não quis nem ver. vi só depois
quando a molecada devolveu a carteira do velhinho
que ficou agradecido demais,
ele disse que a aposentadoria dele estava toda ali.
o ladrão
ficou esticado na rua até chegar a polícia. eu achei que ele tava dormindo pra passar a vergonha,
mas quando a polícia chegou eles viram que o menino estava morto.
-que horror, mãe. – eu disse virando à esquerda.
-foi muito triste. o menino era puro osso, não aguentou a pancada. disseram depois que ele tinha só 12 anos. foi o primeiro morto que eu vi.
(ficamos caladas por um momento.
no rádio estava tocando uma música do bruce springsteen)
– mas sabe,
essas coisas trágicas assim
eram raras de acontecer. geralmente os dias eram calmos, a cidade era boa naquela época.
– a cidade ainda é boa, mãe.
-de domingo eu e teu pai íamos no cinema. só tinha 1 na cidade toda. ficava uma fila Enorme pra assistir o filme de jesus na sexta feira santa. eu tive muita sorte
de viver naquele tempo, – ela disse
sem me escutar
falava comigo porque eu estava no carro
mas na verdade ela estava falando sozinha
eu podia ser qualquer pessoa
ela só precisava de um ouvido humano.
engraçado que ela me contava sempre
as mesmas histórias, todo dia era como se ela esquecesse de tudo
e me contasse de novo
e de novo as mesmas histórias
de como
o meu avô era um excelente alfaiate
ele fazia terno para o sílvio santos.
seu avô não conseguiu melhorar de vida porque era muito cabeça dura, minha mãe dizia, ela que sempre gostou de costura.
queria Aprender, ficava do lado do vô observado como ele
fazia pra cortar o tecido
pra colocar a linha na agulha
pra dar ponto na máquina
mas logo ele mandava ela embora dali.
quando eu tinha uns 4 anos
minha mãe se inscreveu num curso de costura
e finalmente começou a aprender o que ela gostaria tanto que o pai a tivesse ensinado. me levava junto pras aulas, o cheiro de linha entrava em mim como uma flecha.
eu via aquelas senhoras todas
vestidas com blusas de flores
eu batendo na altura
dos joelhos delas
joelhos inchados e morenos.
minha mãe era a mais moça da sala, eu pensava que isso que nunca mudaria
e corria pela loja
que era longa, corria com os meus brinquedos nas mãos.
nesse dia que ficou guardado na memória, porque a gente não guarda todos os dias de uma época, a gente guarda 1
ou 2 que servem
de bandeira,
nesse dia que guardei eu estava com um chaveiro de queijo nas mãos. eu mordia aquele plástico
como se estivesse comendo
queijo quente
era o melhor gosto do mundo
me fazia pular
até o máximo que eu conseguia.
não era muito
mas pra mim, naquele tempo, era o céu.
– o que ela tá fazendo? – perguntavam.
– é assim que ela brinca.
eu e a minha mãe saíamos muito juntas. ela me levava no shopping pra eu andar de patins.
eu sonhava com a pista de patinação quase todas as noites
e quando eu estava lá patinando
não conseguia respirar direito tamanha felicidade.
minha mãe assistindo me dava tchau toda hora, meu peito enchia.
depois
a gente tomava lanche
e tentava pegar urso naquelas máquinas de pelúcia,
nunca conseguíamos.
eu ficava com pena
daqueles animais aprisionados
eu podia passar horas com o rosto colado ali no vidro olhando pra eles
–tira o nariz daí filha, é sujo.
naquele tempo minha mãe ainda não me contava
as histórias de sua vida
naquele tempo a gente vivia no presente.
hoje em dia
a vida da minha mãe é lembrar do que aconteceu com ela dos 12 aos 24 anos.
eu nasci quando ela tinha 25.
a partir dos 25 sou eu que conto
dela pra ela
que estava ocupada demais cuidando de mim e não se recorda de nada.
– lembra quando você pintava, mãe?
a janela da sala ficava aberta pra sair o cheiro.
você pintava muitas uvas
e pintava camisetas pra mim.
eu adorava o cheiro da tinta e o nosso carpete verde.
eu ia pra escola pensando em você.
ela sorriu.
– você tinha umas revistas de arte pra fazer colagem, lembra? você colava umas coisas lindas
nas cartas que você escrevia pras suas irmãs. você tinha uma coleção de selos também, lembra?
– nossa é mesmo, meus selos.
como eu adorava aquilo.
-eles devem estar em alguma caixa no seu armário.
– será? já faz tanto tempo, filha. esses selos não existem mais.
– engraçado.
– o que?
-isso da gente ir perdendo as coisas sem saber nem como.
– não sobra quase nada, filha – ela disse, a luz da rua
deixava o osso do colo dela
tão nítido.
quando eu adormecia ali, me lembro,
aquele osso me machucava
delicadamente.
★★★★★★
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★★★
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obrigada João S2!