o velho andava vendendo um relógio de ouro. ninguém na cidade tinha dinheiro pra comprar aquilo
muito menos interesse, as pessoas
olhavam pro velho pensando Se eu tivesse grana jamais compraria
e sorriam dizendo Não.
aos poucos
o velho foi percebendo esse jeito de
olhar pro relógio e
olhar pra ele, isso
foi o deixando cabisbaixo.
mesmo assim ele não desistia,
acordava cedo, vestia seu terno apesar do calor e de nenhum evento acontecendo há anos naquela cidade que ele nasceu e jamais saiu, quem sabe sairia quando finalmente vendesse o relógio, o problema
era pra Onde.
preciso comprar um mapa ele pensou
depois de passar mais 1 dia
oferecendo a mesma coisa pras mesmas pessoas. ele sentou
na varanda de sua casa
sempre virado pra porta entreaberta da sala
o mesmo sofá
desde que ele se casou. o sofá que, 30 anos depois,
foi lugar da ana morrer, a primeira
mulher a morrer antes do marido naquela cidade sem homens.
desde então,
o velho não conseguia mais
sentar no sofá da sala, era como se a ana fosse o sofá, era como sentar na cabeça da ana. o velho
chorou um pouco
segurando o relógio dentro de um saquinho transparente
como se o relógio fosse
tudo o que ele tinha além da orelha
enorme, orelha e nariz nunca param de crescer. agora carro
raramente passava
nas costas do velho ali na varanda
mais fácil passar um cavalo
e um cachorro, passava direto 1 cachorro sem olho
e às vezes passava um cavalo. mas o velho não via
estava sempre de costas pra rua
imerso nos pensamentos de ter
um relógio nas mãos que não servia
pra nada
talvez só pra deixar o velho menos invisível. porque se fosse só ele
sem oferecer o relógio
pras mulheres que voltavam da feira
pras mães com criança no braço
ninguém o notaria
ele passaria pela rua como um mofo qualquer. a elegância do terno de outrora agora parecia patética
vê se pode
usar paletó em plena semana.
as pessoas
passavam pela casa do velho
de volta da feira que era longe quase em outra cidade
e pensavam que
se tivesse um mercadinho
ali naquele terreno
não seria nada mal, (quem sabe quando o velho morrer).
até que um dia
chegou um
Homem na cidade
assim, sem mais nem menos.
endinheirado, disseram, deu pra perceber pelo carro.
um Homem
minha nossa
fazia tempo que as mulheres não viam algo daquele tipo.
os homens que tinham na cidade
ou estavam mortos
ou eram crianças
aquela terra, por enquanto, era um lugar de mulheres viúvas
e do velho
com o relógio de ouro
ninguém com nada pra fazer.
então as pessoas colocavam as suas
cadeiras na frente de casa
raramente viam um carro como o de hoje
muito menos com um Homem dentro
na maioria das vezes só cavalo
e o cachorro caolho.
esse cachorro logo morre, as pessoas comentavam
mas no fim quem morreu primeiro
foi o cavalo, o bicho espatifou no chão, um barulho tremendo,
as pessoas achavam que essa coisa de mal súbito só dava em gente.
por dias
o corpo do cavalo ficou no meio da estrada
sem ninguém pra tirar além das
moscas de trabalho lento, afinal
era um cavalo grande
que mesmo morto
não atrapalhava ninguém, raramente passava carro ali.
até que chegou
o Homem endinheirado
e o cavalo agora sim
começou a atrapalhar. ficou no meio
da passagem, as ruas daquelas cidade eram bem estreitas.
o Homem buzinou,
buzinou de novo
foi juntando gente
logo juntou uma porção mulheres (as crianças na escola, homem não tinha) pra tentar
tirar o cavalo do meio
e as moscas, as moscas que já faziam parte do corpo do bicho.
– nós vamos ajudar o senhor. – as mulheres disseram amarrando os cabelos,
levantando as mangas,
o Homem endinheirado parecia impaciente
aquela cidade era só uma ponte.
de repente chegou o velho
agora um pouco menos
cabisbaixo.
isso porque ele percebeu logo
que podia oferecer o relógio pro Homem, aquele sim tinha dinheiro pra pagar
enquanto as mulheres se juntavam
pra tirar o cavalo
mais de 20 levantado o bicho que além do cheiro,
soltou o peso
todo no chão.
– não dá, a gente vai precisar de mais ajuda. chama a Neide, chama a
Márcia – as mulheres disseram,
e o velho
se aproximou do carro.
– boa tarde. – ele disse. – eu tenho aqui comigo um
relógio de ouro
que é herança de família,
uma belezura. (ele mostra o relógio no saquinho)
será que o senhor não tem interesse de comprar?
(chegou a Neide, a Márcia, a Fátima, a Gertrudes)
o velho pensando ainda bem
que estou de terno
imagina só falar com um sujeito daqueles vestindo uma roupa qualquer.
o Homem
deu uma boa olhada no velho, a sobrancelha Levantada. discretamente checou
se a carteira ainda estava no bolso
aquele velho
parecia astuto
o Homem tinha ouvido falar
de uma gangue
com bandido tudo na terceira idade.
as mulheres
agora mais de 30
juntas e
suadas
aleluia conseguiram
Levantar o
Cavalo,
e levaram o corpo pro canto
onde tinha mato.
foi quase um enterro, faltou só
enterrar.
então o Homem endinheirado
entrou no carro dizendo pro velho:
-Não.
e foi embora
pra nunca mais.
lentamente,
as mulheres foram voltando pra casa
honradas
por terem ajudado um Homem de fora
e também muito
mas muito cansadas.
o velho
foi indo logo atrás
sentindo que carregava uma coisa nas mãos sem ser o relógio,
pela primeira vez em muito tempo
alguém tinha olhado pra ele sem pena.
★★★★★★
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★★★
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