Em sua segunda edição, a Sessão Abraccine promove a circulação e o debate do documentário “Outro Sertão”, de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela. Resultado de mais de dez anos de pesquisa sobre o turbulento período em que Guimarães Rosa viveu na Alemanha, o filme, premiado no Festival de Brasília e Mostra de São Paulo, será visto nas próximas semanas em dez cidades brasileiras: Belém (PA), João Pessoa (PB), Recife e Afogados da Ingazeira (PE), Maceió (AL), Salvador (BA), São Paulo (SP), Florianópolis (SC), Porto Alegre e Pelotas (RS).
Após cada sessão, debates oferecem a oportunidade de aprofundar questões sobre cinema e o próprio filme com especialistas em literatura e cinema documental, como em Florianópolis, com o crítico José Geraldo Couto e Berthold Zilly – tradutor de livros de Euclides da Cunha e Raduan Nassar, entre outros, e que se dedica no momento a uma nova tradução de “Grande Sertão: Veredas” para o alemão. Em São Paulo (CineSesc), a sessão conta com a presença da diretora do filme, Soraia Vilela, e do crítico Orlando Margarido.
Ao estabelecer parceria inédita com salas independentes, a Sessão Abraccine amplia um circuito que até então contava com quatro cidades. “A produção no país continua forte, mas a reflexão cinematográfica, fundamental para a construção de uma identidade brasileira nas telas, vem sofrendo um grande déficit, com filmes entrando e saindo de cartaz sem o devido debate”, diz o presidente da Abraccine, Paulo Henrique Silva. “A Sessão Abraccine vem preencher esse vazio, apresentando um olhar diversificado sobre filmes que, em seus propósitos, são capazes de nos mostrar outros lugares, outros Brasis. É o caso de ‘Outro Sertão’, que, como seu título já deixa claro, exibe uma história até então pouco conhecida, sobre o escritor Guimarães Rosa e Aracy Moebius de Caravalho”.
“Ficamos felizes com o convite da Abraccine, sobretudo porque o filme não contou ainda com uma distribuição regular em cinema e TV”, diz Soraia Vilela. “É mais uma oportunidade de revelar esse aspecto até então desconhecido da trajetória do Guimarães Rosa. Em momentos complexos como o que atravessamos atualmente, tanto no Brasil em especial quanto no mundo, é essencial relembrar os regimes arbitrários da história, bem como as formas de resistência a eles”.
Sobre o filme: Dividido em capítulos – a chegada, o amigo, o diário, o escritor, o diplomata, o alarme e a partida – “Outro Sertão” rastreia os quatro anos vividos por Guimarães Rosa em Hamburgo. Imagens, em grande parte feitas por amadores alheios à estética oficial da propaganda nazista, esboçam o cenário no qual Guimarães Rosa viveu desde sua chegada na Alemanha, em 1938, até sua partida em 1942. Trechos de cartas, contos e anotações em off revelam suas impressões pessoais. Documentos inéditos (alemães e brasileiros) e testemunhos de judeus que fugiram para o Brasil por Hamburgo, bem como de amigos e críticos, recriam a experiência do diplomata na Alemanha nazista.
Realizado após mais de dez anos de pesquisas na Alemanha, Brasil, Israel e Portugal, o filme registra a a relação de Guimarães Rosa com a cultura alemã desde sua infância, bem como sua atuação como diplomata em um momento crítico da história mundial. Além de revelar um conteúdo histórico desconhecido e de grande relevância, o documentário traz uma entrevista inédita, realizada com João Guimarães Rosa na década de 1960 na Alemanha, na qual ele próprio fala de sua obra e de sua atuação como escritor e diplomata. Até então, não se tinha conhecimento de praticamente nenhuma imagem em movimento do escritor.
“Outro Sertão” procura detectar o papel exercido por Guimarães Rosa no consulado através de uma análise detalhada da correspondência diplomática do período, do relato de historiadores e da comparação com dados de outras representações diplomáticas brasileiras na Alemanha naquele período. Documentos da Gestapo mostram como as autoridades nazistas espionaram Guimarães Rosa, observando o “comportamento impróprio” do então vice-cônsul.
O filme apresenta a visão deste que foi o único escritor latino-americano a viver na Alemanha durante o nazismo. Imagens de época esboçam um cenário no qual Guimarães Rosa viveu, que se contrapunha à imagem positiva do país que o escritor iniciante, ex-aluno de um colégio de padres alemães em Belo Horizonte, mantinha desde a infância. E que levanta a questão: em que sentido a vivência neste “outro sertão” – árido e difícil – foi fundamental para a constituição da obra daquele que foi um dos maiores escritores brasileiros do século 20?
Sobre a Abraccine: Criada em 2011, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema é a primeira entidade nacional a reunir críticos de todas as regiões do país: são mais de 100 associados de 16 estados. A entidade organiza júris em diversos festivais de cinema, concede prêmios, organiza livros, promove cursos e seminários, e trabalha pela inserção da crítica nos mecanismos de discussão das políticas pelo cinema brasileiro.
SERVIÇO
24/4, 19h – Cinema São Luiz (Recife-PE); debate com o professor Cláudio Bezerra, a escritora Renata Pimentel e mediação do crítico Luiz Joaquim.
25/4, 19h – Cinemateca Paulo Amorim (Porto Alegre-RS); debate com o professor Arthur Telló (PUC-RS) e os críticos Willian Silveira e Mônica Kanitz.
25/4, às 20h – Cinema do CIC (Florianópolis-SC); debate com o tradutor Berthold Zilly, a professora de cinema Marcia Paraíso e o crítico e tradutor José Geraldo Couto.
26/4, às 18h30 – Sala Walter da Silveira (Salvador-BA); debate com o crítico João Paulo Barreto (A Tarde), a professora Evelin Balbino (UFBA) e o crítico e programador Adolfo Gomes.
26/4, às 16h – Cine Olímpia (Belém-PA), seguido de debate com o crítico e programador Marco Antônio Moreira.
2/5, às 20h30 – CineSesc (São Paulo-SP); debate com a diretora do filme, Soraia Vilela e o crítico Orlando Margarido.
6/5, às 14h – Cine Arte Pajuçara (Maceió-AL); debate com os professores Susana Souto (UFAL), David Lopes Silva (UFAL/Arapiraca), Chico Torres e Tatiana Magalhães (Mirante Cineclube).
9/05, às 19h – Cine UFPel (Pelotas – RS); debate com as professoras Ivonete Pinto e Cláudia Fonseca (UFPel)
14/05, às 18h30 – Cine São José (Afogados da Ingazeira-PE), em parceria com 3ª Mostra Pajeú de Cinema; debate com o professor José Rogério Oliveira (Fapopai) e o crítico André Dib.
João Pessoa – A definir.
Crítica: Um homem de qualidades
por Orlando Margarido
Ao João Guimarães Rosa fabulista e fabuloso, como o consagrou Carlos Drummond de Andrade, soma-se uma habilidade pouco iluminada pela memória no documentário Outro Sertão. Entre 1938 e 1942, o escritor mineiro, então cônsul-adjunto em Hamburgo, Alemanha, promoveu a fuga de judeus para o Brasil ao conceder-lhes vistos de turista, salvando-os da perseguição nazista. Contava com o apoio de sua segunda mulher oficial, Aracy Moebius de Carvalho, mas pagou o ato desafiador com um recolhimento compulsório de quatro meses por ordem dos alemães, no momento em que o Brasil rompe relações com o país. A trajetória esmiuçada no filme das diretoras Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, Prêmio Especial do Júri do 46º Festival de Brasília, encerrado terça 24, não é porém sua maior revelação. Numa pesquisa de uma década, a dupla encontrou um raro registro audiovisual de Rosa.
Em 1962, o escritor debatia com desenvoltura na tevê alemã suas principais obras com um entrevistador que entendia do riscado em Grande Sertão: Veredas e Sagarana, por exemplo. Ouvia as perguntas na língua do anfitrião e, sem precisar da tradução, respondia em português, deixando o outro um tanto atônito. Rosa, que havia estudado quando garoto com padres alemães em Belo Horizonte, justifica o questionamento de sua linguagem cada vez mais sintética como exigência do jornal em que publicou os contos de Primeiras Histórias, então recém-publicado.
É bom lembrar que as versões locais dos livros ainda não existiam. Alguns estudiosos e tradutores posteriores da obra roseana são ouvidos em registros de arquivo, no momento em que se aguarda uma nova tradução por Berthold Zilly, que verteu Os Sertões, de Euclides da Cunha, assim como os descendentes dos judeus assistidos por Rosa. Enquanto isso, essa bonita revisão poética, em que a voz do autor sobressai a partir de seus diários de escrita peculiar, demonstra mais uma faceta de um homem com qualidades.
* originalmente publicado na revista Carta Capital 768, outubro de 2013.