– você acha que cachorro sente tédio?
– não, claro que não – respondi como se fosse
óbvio, não era,
aquela pergunta
ficou passeando em mim.
no outro dia
acordei com ela na testa, levantei da cama,
fui fazer café.
esperei a água ferver (a pergunta
a testa)
coei, enchi a caneca
olhando pela janela
embaçada do frio. as pessoas caminhavam pro trabalho
algumas de mochila, outras de
mão solta,
tão prontas para o dia que virá. não sei
se cachorro sente tédio,
o meu ainda dormia,
no quarto com cheiro de corpo descansando,
um cheiro que
com a casa aberta era impossível encontrar.
da porta eu fiquei olhando
o sono
do meu cachorro que não é meu, nada é, será que
ele sonha?
eu olho pro olho dele e
sinto ali um tipo de tristeza que não dói, que apenas está,
isso é tão nosso
é de todos que estão vivos
até dos objetos. se olharmos para o centro de uma mesa
bem no meio
a tristeza estará lá. se olharmos um piano por dentro
aquela estrutura subindo
e descendo a cada tecla
virando som
isso é a tristeza que não dói, é o olho do bicho, é o lugar onde estamos vivos todos juntos
além da Terra que gira sem ninguém notar. eu sinto solidão
quando assisto programas sobre
planetas. não sei
se o meu cachorro sente
tédio,
medo eu sei que sim, ele foge do rodo por exemplo, corre dele, eu vejo medo ali e também no quando
eu vou embora
ele tem medo de eu nunca mais voltar.
prometo que volto, mas também eu
já não sei se volto
afinal a morte existe
em mil jeitos de
morrer. uma vez
eu deixei meu cachorro por algumas horas na casa da minha vó
fui comer pizza com os meus primos.
– deixa ele aqui, – minha vó disse. – não pode cachorro na pizzaria.
será que pelo tempo que fiquei fora
(a pizza foi boa e eu demorei mais do que previa)
meu cachorro pensou que aquilo foi um abandono? e a casa da minha vó seria a sua nova realidade, agora. será que ele sentiu desespero? eu queria poder consolá-lo desses traumas todos
curá-lo do que meus erros lhe causaram
me arrependo de
abandoná-lo um pouco e toda vez
inevitavelmente.
eu queria descobrir a linguagem perfeita
pra me comunicar com o meu cachorro, sei que não são as palavras.
ouvi jeff buckley dizer numa entrevista que a Voz é a nossa essência. a entonação muda tudo numa frase que é a mesma. então não é sobre as palavras, nunca é sobre elas.
o jeff disse também que edith piaf captava a imaginação dele como ninguém. não era porque ela cantava em francês, não era sobre o francês. era algo entre
o ar que saía da boca
e a voz virando canto. meu cachorro gosta de música. a música capta a imaginação dele. cachorros imaginam vidas possíveis
em meio a outros animais e a nós, os donos,
que não somos donos de nada.
os cachorros pensam na gente como alguém que eles amam muito e por isso
achamos que somos donos deles
porque eles entregam o coração pra gente e ter o coração de alguém na mão é tão forte, ficamos sem saber o que fazer. então começamos a dar ordens, achar que estamos no comando, vestimos botas, apontamos dedos. quanto erro, meu deus, meu café na caneca
está esfriando. dou mais um gole
tentando não fazer barulho
não quero acordar meu cachorro
é bom assistir seu sono, é como ouvir uma música de satie.
meu cachorro gosta
de música clássica
sei pelo jeito que ele respira enquanto coloco um disco pra tocar. e sei que ele espera algo a mais da vida
porque meu cachorro olha pela janela do terraço
diariamente apoia as patas
no beiral e
fica olhando a cidade pelo vidro
até onde a vista alcança, isso
é sonhar.
ainda que de longe
quando ele vê outro cachorro
o corpo dele muda
a identificação com um ser parecido é uma coisa bonita de perceber. eu já vi
uma criança
caminhando por um restaurante sem
fixar os olhos em nada
mas quando ela viu outra criança
então o corpo dela de repente ficou mais vivo
ela soltou a mão
da mãe
não sentia medo
foi direto
se conectar com
aquele ser parecido e nada mais importava. eu mesma
já passei por isso.
estava almoçando em um restaurante de shopping
numa mesa que era
de frente para um corredor
e naqueles cinquenta minutos de almoço eu vi passar tantas famílias, tantos casais e mulheres sozinhas, amigos,
pessoas que estavam trabalhando no shopping,
um cozinheiro fora do expediente,
irmãos com sacolas, velhos tomando sorvete, um homem que parou a namorada e
a beijou profundamente
apenas porque lhe deu vontade,
eu vi
tanta gente passando,
aquilo
me deu uma
paz. percebi que estamos todos buscando uma coisa parecida
não sabemos o nome do que buscamos
mas tem a ver com o olhar do outro
em nós.
(meu cachorro despertou.
bocejou seus pequenos dentes
e língua
me olhou com a cabeça virada. Retribui o olhar dando um último gole no café
identificando no gosto daquilo
uma falta de pressa pra começar
o dia, mais 1,
mais quantos
não é pergunta que se faça.
– hoje é o seu aniversário. – eu disse pra ele
que se levantou da caminha,
roçou na minha perna e foi
fazer xixi.)
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
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Muito bom.
obrigada TN.
um beijo!