Aline Bei: 11 anos

‘The Doorway’ (1929-30), de Edward Wolfe

 

– você acha que cachorro sente tédio?

– não, claro que não  – respondi como se fosse

óbvio, não era,

aquela pergunta

ficou passeando em mim.

no outro dia

acordei com ela na testa, levantei da cama,

fui fazer café.

esperei a água ferver (a pergunta

a testa)

coei, enchi a caneca

olhando pela janela

embaçada do frio. as pessoas caminhavam pro trabalho

algumas de mochila, outras de

mão solta,

tão prontas para o dia que virá. não sei

se cachorro sente tédio,

o meu ainda dormia,

no quarto com cheiro de corpo descansando,

um cheiro que

com a casa aberta era impossível encontrar.

da porta eu fiquei olhando

o sono

do meu cachorro que não é meu, nada é, será que

ele sonha?

eu olho pro olho dele e

sinto ali um tipo de tristeza que não dói, que apenas está,

isso é tão nosso

é de todos que estão vivos

até dos objetos. se olharmos para o centro de uma mesa

bem no meio

a tristeza estará lá. se olharmos um piano por dentro

aquela estrutura subindo

e descendo a cada tecla

virando som

isso é a tristeza que não dói, é o olho do bicho, é o lugar onde estamos vivos todos juntos

além da Terra que gira sem ninguém notar. eu sinto solidão

quando assisto programas sobre

planetas. não sei

se o meu cachorro sente

tédio,

medo eu sei que sim, ele foge do rodo por exemplo, corre dele, eu vejo medo ali e também no quando

eu vou embora

ele tem medo de eu nunca mais voltar.

prometo que volto, mas também eu

já não sei se volto

afinal a morte existe

em mil jeitos de

morrer. uma vez

eu deixei meu cachorro por algumas horas na casa da minha vó

fui comer pizza com os meus primos.

 

deixa ele aqui, – minha vó disse. – não pode cachorro na pizzaria.

 

será que pelo tempo que fiquei fora

(a pizza foi boa e eu demorei mais do que previa)

meu cachorro pensou que aquilo foi um abandono? e a casa da minha vó seria a sua nova realidade, agora. será que ele sentiu desespero? eu queria poder consolá-lo desses traumas todos

curá-lo do que meus erros lhe causaram

me arrependo de

abandoná-lo um pouco e toda vez

inevitavelmente.

eu queria descobrir a linguagem perfeita

pra me comunicar com o meu cachorro, sei que não são as palavras.

ouvi jeff buckley dizer numa entrevista que a Voz é a nossa essência. a entonação muda tudo numa frase que é a mesma. então não é sobre as palavras, nunca é sobre elas.

o jeff disse também que edith piaf captava a imaginação dele como ninguém. não era porque ela cantava em francês, não era sobre o francês. era algo entre

o ar que saía da boca

e a voz virando canto. meu cachorro gosta de música. a música capta a imaginação dele. cachorros imaginam vidas possíveis

em meio a outros animais e a nós, os donos,

que não somos donos de nada.

os cachorros pensam na gente como alguém que eles amam muito e por isso

achamos que somos donos deles

porque eles entregam o coração pra gente e ter o coração de alguém na mão é tão forte, ficamos sem saber o que fazer. então começamos a dar ordens, achar que estamos no comando, vestimos botas, apontamos dedos. quanto erro, meu deus, meu café na caneca

está esfriando. dou mais um gole

tentando não fazer barulho

não quero acordar meu cachorro

é bom assistir seu sono, é como ouvir uma música de satie.

meu cachorro gosta

de música clássica

sei pelo jeito que ele respira enquanto coloco um disco pra tocar. e sei que ele espera algo a mais da vida

porque meu cachorro olha pela janela do terraço

diariamente apoia as patas

no beiral e

fica olhando a cidade pelo vidro

até onde a vista alcança, isso

é sonhar.

ainda que de longe

quando ele vê outro cachorro

o corpo dele muda

a identificação com um ser parecido é uma coisa bonita de perceber. eu já vi

uma criança

caminhando por um restaurante sem

fixar os olhos em nada

mas quando ela viu outra criança

então o corpo dela de repente ficou mais vivo

ela soltou a mão

da mãe

não sentia medo

foi direto

se conectar com

aquele ser parecido e nada mais importava. eu mesma

já passei por isso.

estava almoçando em um restaurante de shopping

numa mesa que era

de frente para um corredor

e naqueles cinquenta minutos de almoço eu vi passar tantas famílias, tantos casais e mulheres sozinhas, amigos,

pessoas que estavam trabalhando no shopping,

um cozinheiro fora do expediente,

irmãos com sacolas, velhos tomando sorvete, um homem que parou a namorada e

a beijou profundamente

apenas porque lhe deu vontade,

eu vi

tanta gente passando,

aquilo

me deu uma

paz.  percebi que estamos todos buscando uma coisa parecida

não sabemos o nome do que buscamos

mas tem a ver com o olhar do outro

em nós.

 

(meu cachorro despertou.

 

bocejou seus pequenos dentes

e língua

me olhou com a cabeça virada. Retribui o olhar dando um último gole no café

identificando no gosto daquilo

uma falta de pressa pra começar

o dia, mais 1,

mais quantos

não é pergunta que se faça.

– hoje é o seu aniversário. – eu disse pra ele

que se levantou da caminha,

roçou na minha perna e foi

fazer xixi.)

Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei 

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2 comentários sobre “Aline Bei: 11 anos

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