Giovanna Braz: O esoterismo de Platão

Por Giovanna Braz*

Na segunda metade do século passado[i] surgiu um novo modelo de interpretação da filosofia platônica que gerou muita polêmica entre os estudiosos da Filosofia Antiga: contrariando o modelo de interpretação tradicional fundado no início do século XIX, o novo método de interpretação resgata e valoriza as doutrinas esotéricas do filósofo ateniense. E é sobre elas que vamos brevemente falar aqui.

Antes de tudo, não custa darmos as razões para o título “sensacionalista”: esotérico se contrapõe ao exotérico, ou seja, aquilo que diz respeito ao que é interno e aquilo que diz respeito ao que é externo. De Aristóteles, por exemplo, só temos a obra esotérica, pois seus escritos exotéricos, em sua maioria diálogos que eram destinados ao grande público, foram todos perdidos. No nosso caso, os diálogos platônicos compõem a filosofia exotérica de Platão, sendo o nosso foco as doutrinas “internas” da Academia, isto é, os ensinamentos que não estavam disponíveis ao público.

Chamo aqui de doutrinas esotéricas o equivalente ao que Aristóteles, no quarto livro de sua Física, chamou de agrapha dogmata, isto é, doutrinas não-escritas. A expressão designa o conjunto de ensinamentos que Platão teria reservado a lições orais no interior da Academia e que não foram registradas em seus escritos[ii]. Obviamente, só temos conhecimento destas doutrinas através de uma tradição indireta, composta principalmente por discípulos diretos de Platão, como Aristóteles, Espeusipo e Xenócrates. Fazem parte também da tradição doxográfica Teofrasto, Aristóxeno, Alexandre de Afrodísia, Simplício e Sexto Empírico. A maior fonte de informações sobre as doutrinas não-escritas é, sem dúvidas, Aristóteles, e apesar das informações sobre estas doutrinas estarem espalhadas por toda sua obra, o maior número delas encontra-se no primeiro livro da Metafísica[iii].

Antes de entrar nos pormenores do esoterismo platônico, convém apresentar àqueles que não conhecem um resumo [f*ck*ng basicão] das doutrinas (escritas) de Platão, isto é, aquelas que podem ser confrontadas com os diálogos, para se ter uma noção das diferenças que marcam cada posição. Como a “analogia da linha” presente na obra República sintetiza o pensamento ontológico do filósofo, cremos se tratar de uma ótima ilustração para a “doutrina” platônica.

A analogia da linha é precedida por outra analogia, a do sol, que estabelece o contraste entre o âmbito sensível e o âmbito inteligível da realidade, relacionando o que o sol é no âmbito sensível ao que a Ideia de Bem é no inteligível. A partir disso, recomenda o argumento:

– imagine um segmento de reta (AB) dividido em duas seções, AC e CB.

– a seção AC representa o âmbito da realidade sensível, com menor grau ontológico (“grau de existência”) em relação a CB, a realidade inteligível.

– cada seção é dividida, então, em dois segmentos na mesma proporção, AD:DC e CE:EB

– ao segmento AD corresponde os seres com menor grau de visibilidade, isto é, as “imagens… sombras… reflexos… e tudo o mais que for do mesmo gênero” (509 e)

– DC corresponde aos seres com maior grau de visibilidade, isto é, “os animais que nos circundam, toda espécie de plantas e todos os objetos artificiais” (510 a), em outras palavras, os seres dos quais as imagens (AD) são ‘cópias’; os seres corpóreos, digamos.

– ao CE corresponde os objetos da razão, ou objetos matemáticos, que possuem menor grau de inteligibilidade, dos quais as coisas sensíveis (AC) são ‘cópias’.

– EB corresponde aos seres de maior grau de inteligibilidade, os seres que realmente são, a saber, as ideias, das quais os objetos de razão (CE), por sua vez, são cópias.

Apresentado este parco resumo, vejamos as doutrinas não escritas.

Como o acesso ao texto aristotélico é mais fácil[i], pensamos utilizar outros aqui que não os dele. Assim, faremos um mosaico dos testemunhos de Aristóxeno, Simplício, Teofrasto, Sexto Empírico e Alexandre de Afrodísia.

Os discursos nos quais Platão falava sobre os Princípios Supremos eram chamados de “sobre o Bem”. Segundo Simplício, “Aristóteles, Heráclides, Hestieu e outros colegas de Platão”, “escreveram o que foi dito de um modo um tanto enigmático, tal como foi dito”. Aristóxeno, a respeito desses discursos, diz o seguinte:

“(…) cada um se aproximava pensando que ia aprender algum dos que normalmente são considerados bens humanos, por exemplo, a riqueza, a saúde e a força e, em geral, uma felicidade maravilhosa. Mas quando começaram os raciocínios sobre as matemáticas, tanto sobre números como sobre geometria e astronomia, e, por último, quando se afirmou que o bem é o uno, isso lhes parecia completamente chocante. Consequentemente, alguns desprezaram o assunto, outros o criticaram.”

Quais são, então, estes Princípios Supremos dos quais Platão falava em seus discursos, que ficaram reservados a oralidade? Vejamos o que diz Simplício:

“Segundo Platão, os princípios de todas as coisas, incluídas as ideias, são o uno e a díade indeterminada, à qual chamava de grande e pequeno, como também recorda Aristóteles em Sobre o bem. Pode-se aprender isso também de Espeusipo, de Xenócrates e de outros que presenciaram os discursos de Platão: todos o transcreveram e conservaram assim sua doutrina e afirmam que ele servia-se desses princípios.”

Os Princípios Supremos, portanto, são o Uno e a Díade Indeterminada. Contudo, as Ideias não são derivadas diretamente dos Princípios Supremos. Como sublinha Teofrasto:

“E também Platão, ao remeter as coisas aos princípios, parece que tratou das coisas sensíveis ligando-as às Ideias, e estas, por sua vez, aos números, e parece que a partir desses ele sobe aos princípios e depois desce, através da geração, até as coisas de que se falou.”

Assim, vemos que os Números são os intermediários entre as Ideias e os Princípios Supremos. A este respeito, Sexto Empírico esclarece do seguinte modo:

“(…) Consideremos, por exemplo, como as Ideias, que segundo Platão são incorpóreas, preexistam aos corpos, e como tudo o que se gera, gere-se a partir da relação com elas. Não obstante isso, elas não são os princípios [primeiros] dos seres, uma vez que cada Ideia, tomada individualmente, é considerada uma, enquanto tomada junto com outra ou outras, é dita duas, três, quatro, de modo que deve existir algo que está ainda acima da realidade das Ideias, ou seja, o Número, por participação no qual o um, o dois, o três ou um número maior se predica delas.

(…) Os princípios dos seres são, portanto, dois: a primeira Unidade, por participação na qual todas as unidades que se contam são concebidas justamente como unidades, e a Díade indeterminada, pela participação na qual todas as díades determinadas são, justamente, díades.”

Já Alexandre de Afrodísia, resume a doutrina do seguinte modo:

“Ademais, as Ideias são os princípios das outras coisas, enquanto os princípios das Ideias, que são números, são os princípios dos números; e os princípios dos números era a unidade e a dualidade.”

Como vemos, as doutrinas documentadas pela tradição indireta nos revela uma filosofia platônica um tanto quanto diferente daquela que conhecemos através dos diálogos, cuja imagem mais caricata se resume na chamada Teoria das Ideias (ou Formas). Nestas doutrinas secretas, Platão defendia que as Ideias não seriam mais os princípios supremos dos seres. Em outras palavras, teria ido além da Teoria das Ideias: do mesmo modo que a esfera dos seres sensíveis dependem da esfera inteligível cujo topo é representado pelas Ideias, as próprias Ideias dependeriam também de uma outra esfera, trata-se de realidades supremas e primeiras, isto é, princípios dos quais as Ideias são derivadas.

Os testemunhos dos que nos relatam as doutrinas não escritas nos colocam diante de uma estrutura hierárquica da realidade bem diferente da que vimos através da analogia da linha, exposta nos diálogos: as Ideias, que não são mais os seres supremos, derivam dos Números que, por sua vez, são subordinados ao Princípio do Uno e ao Princípio da Díade indeterminada de grande e pequeno. Este é o núcleo do pensamento esotérico de Platão, que modifica profundamente a estrutura geral da sua metafísica.

*Giovanna Braz. Graduanda em filosofia pela Universidade Federal de São Carlos

Notas

[i] O novo método interpretativo surge a partir dos estudos realizados na chamada Escola de Tübingen, na Alemanha, cujos maiores expoentes foram Hans Kramer, Konrad Gaiser e, posteriormente, Thomas Szlezák. A partir de 1980, estes estudos foram aprofundados em Milão, na Itália, por Giovanni Reale, dentre outros, “com uma contribuição tão significativa a ponto de justificar a nova designação de Escola de Tübingen-Milão” (PERINE, 2007, pg. 13).

[ii] Segundo os estudiosos do novo método interpretativo, há as chamadas de “passagens de retenção” nos diálogos, isto é, passagens em que se insinuam doutrinas que vão além dos escritos.

[iii] Há aqui, entre os estudiosos, uma “alternativa metodológica que consiste em preencher o conteúdo das doutrinas não-escritas com algumas interpretações aristotélicas de Platão que não estão documentadas nos Diálogos. O pressuposto é, pois, o seguinte: quando Aristóteles atribui a Platão uma determinada posição teórica que não está registada na sua obra escrita, isso significa que ela foi defendida apenas oralmente e, por isso, pode ser considerada uma doutrina não-escrita” (Lopes,  R.;  Cornelli,  G..  2016, pg. 264).

Referências

LOPES,  R.;  CORNELLI,  G.. As chamadas doutrinas não-escritas de Platão: algumas anotações sobre a historiografia do problema desde as origens até nossos dias. Revista Archai, nº 18, sept. -dec., p. 259 -281, 2016.

PERINE, M.. A tradição Platônica Indireta e Suas Fontes. Revista Dissertatio, Pelotas, n.25, pg.11 – 40, 2007.

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