o que eu amo é a palavra – eu disse por telefone
para um amigo que
há tempos não conversávamos
e explicando pra ele sobre o porquê de não fazer mais Teatro
fui entendendo também em mim. ter um interlocutor
às vezes proporciona essas
reflexões que
sozinhos ainda não tínhamos tido, só pensado
bem de longe
no fundo de si mesmo e
de repente quando alguém pergunta Como você tá?
então a coisa
se Solta
ganha vida
nem parece que é a gente que está falando aquilo.
as peças que eu lia – contei pra ele – me davam muito prazer
eu amava olhar praquelas letras
grifar as minhas falas
ter frases pra mim que como atriz eu colecionava
pro personagem ter estofo
e então falar
a frase no palco
como se fosse eu que tivesse pensado aquilo
o texto era meu por algumas horas, depois
do mundo de novo,
e isso me dava uma alegria tão grande, eu tinha 18 anos. também amava segurar aqueles textos, levar eles pra casa
toda orgulhosa, me sentindo
finalmente importante, eu carregava Brecht, Beckett, Tennessee Williams
e lia aquelas peças maravilhosas a madrugada inteira.
entrar em contato com uma obra prima
sentir a sua força
perceber de repente que no mundo existem coisas tão belas e eu
não sabia,
seguia vivendo a minha vida como se só existisse o que eu já conhecia, o bule, a tv, o jeito da minha mãe,
mas quando eu li
édipo rei, por exemplo, que foi a minha primeira peça,
aí eu entendi que
meu deus do céu, o mundo é enorme. Pessoas extraordinárias passaram por aqui
e deixaram coisas pra gente
desfrutar, aprender
a gente precisa ir atrás dessas coisas
incansavelmente.
e quando eu li Fernando pessoa pela primeira vez? claro, eu já tinha lido ele no colégio, já tinha achado diferente
um poeta dramaturgo
e aqueles personagens
escrevendo à sua maneira mas tudo saído da cabeça de uma pessoa só
e a obra convivendo entre si
como se fosse uma grande peça
com não sei quantos atos
claro, ali eu já tinha achado o Fernando um gênio. mas anos depois
eu entendi melhor
quando o diretor da escola de teatro pediu pra cada aluno da nossa sala trazer um poema decorado pra semana que vem e fazer uma cena.
advinha de quem eu fui atrás?
Dele,
era o poeta que eu lembrava ser o melhor
e eu não lembrava de muitos mais
tinha saído da escola há dois anos
e na minha casa nunca teve livro além dos meus, foi o teatro que começou a me fazer ler.
então eu fui atrás
do melhor poeta que eu conhecia
e mesmo hoje conhecendo outros, o Fernando continua entre os melhores. comprei um livro dele na banca
dessas edições pocket, sabe?
e li,
os poemas eram todos excelentes, aquele em linha reta um mantra
eram todos
excelentes
e cabiam na minha boca de uma forma impressionante
nem eu saberia dizer tão bem sobre mim.
mas tinha 1
teve 1 que
acabou comigo
e ainda acaba, era o tabacaria.
eu também tinha lido esse na escola, acho que até caiu no vestibular, mas não daquele jeito com tudo entrando me vestindo os órgãos cada dedo cada vírgula no seu lugar perfeito pra me matar de beleza, de compreensão, de
magnitude, de
profundidade, o que é isso? o que é
esse poema? Tabacaria não é um poema é uma língua
tudo o que um ser humano precisa saber de mais fundamental está lá
naquelas páginas. decorei o texto em dois dias
e fiz a cena.
ficou ótima, me lembro, não por mim, eu
era péssima.
foi boa porque meu amor finalmente escorreu
meu corpo descobriu ali o que eu queria fazer pro resto da vida: brincar com palavras
fazer elas virarem
histórias, sons, frases que
confortem alguém que acabou de perder algo
ou que acabou de perceber que nunca teve nada. frases que perturbem
de um jeito que faz a pessoa agir
ou chorar
ou entender qualquer coisa que ela pense que entendeu, mesmo que no segundo seguinte a sensação de entendimento passe,
era isso que eu queria fazer pra sempre.
enquanto eu dizia o
tabacaria
os alunos me olhavam de verdade como nunca tinham feito, o diretor também
e eu senti
uma certeza profunda, naquela hora pensei que era sobre ser atriz
mas agora
anos depois
aqui
falando com você
percebo que não, não era o teatro. era a
Palavra.
é engraçado, né? com essas profissões todas que existem nas faculdades, quando somos jovens ficamos confusos. e às vezes
a nossa profissão não é uma ação
é 1 coisa.
a gente precisa de Tempo pra entender isso, pra entender quem somos,
às vezes parece que a seta está fortíssima apontando para um lado
e só o tempo
pode mostrar que não,
você não acha?
meus pais mesmo
eles falavam direto pra mim
que o meu caminho não era o teatro
mas eu
não ouvia
eu tinha certeza que era
e claro, tudo isso foi muito importante, viver o teatro foi
essencial pra mim.
( silêncio )
eu nunca tinha contado isso pra ninguém,
sabia?
alô?
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
Quer ficar por dentro de tudo o que acontece no Livre Opinião – Ideias em Debate? É só seguir os perfis oficiais no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube. A cultura debatida com livre opinião