sempre deixei as barbas de molho
porque barbeiro nenhum me ensinou
como manejar o fio da navalhasempre tive a pulga atrás da orelha
porque nenhum otorrino me disse
como se fala aos ouvidos das pessoassou um cara grilado
um péssimo marido
nove anos de poesia
me renderam apenas
um circo de pulgas
e as barbas mais límpidas da turquia.– Ossos do Ofício, publicado em Boca roxa (1979)
Aos 66 anos e mais de quatro décadas dedicadas à literatura, Ricardo Chacal – ou apenas Chacal – é dono de uma importante obra para a cultura. Poeta, cronista, dramaturgo e letrista, assim como um dos precursores da poesia marginal, Chacal lançou em 1971, em edição mimeografada, o primeiro livro Muito prazer, Ricardo. Sua trajetória foi constituindo um olhar singular na problematização social do país, sem nunca deixar de lado o diálogo entre a poesia e as questões cotidianas, passando também pelas diversas referências da música e cinema. De sua vasta obra, destacam-se Nariz Aniz (1979), Boca Roxa (1979), Comício de Tudo (1986) e Letra Elétrika (1994), além de Tudo (e mais um pouco) – Poesia reunida (1971-2016), lançada em 2016.
Chacal colaborou na revista Navilouca, organizada por Waly Salomão e Torquato Neto. Passou a integrar, em 1975, a coleção literária Vida de Artista, com Cacaso, Eudoro Augusto, Francisco Alvim, entre outros. No mesmo ano foi lançado seu livro América.
Em 1976 a 1977 foi integrante do grupo Nuvem Cigana, com Bernardo Vilhena e Ronaldo Bastos. Formado em bacharel de Comunicação pela UFRJ, Chacal participou do cenário teatral e em 1978 foi co-autor das peças teatrais Aquela Coisa Toda, com o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e Recordações do Futuro, com o grupo Manhas & Manias.
Na década de 1980 trabalhou como cronista do Correio Brasiliense e da Folha de S. Paulo, além de roteirista da TV Globo. Nos anos de 1990 foi produtor do Centro de Experimentação Poética – CEP 20000, da Rioarte, coordenador de oficinas de poesia na UERJ e no Parque Lage, assim como editor da revista O Carioca. Chacal manteve parcerias, como letrista, com Lulu Santos, Jards Macalé e Moraes Moreira.
Para esta homenagem ao poeta, o Livre Opinião realizou um especial e convidou autores de diversas gerações da literatura, como Luiza Romão, Bruno Molinero, Bruno Brum, André Oviedo, Marcelo Labes, Carla Diacov, Marcelo Montenegro, Geruza Zelnys e Daniel Minchoni para realizarem perguntas sobre a vida e obra de Chacal. Confira abaixo:
se o mundo não vai bem
a seus olhos, use lentes
…ou transforme o mundo.ótica olho vivo
agradece a preferência.– Reclame, publicado em Olhos vermelhos (1979)
LUIZA ROMÃO
Pergunta – Chacal, conte-nos como é o seu processo criativo? Ele mudou durante a sua vida?
Resposta – Luiza, não sei exatamente o que é um processo criativo. Eu escrevo antes de pensar. Eu respiro antes de escrever e vou.
★★★
BRUNO MOLINERO
P – Qual a função do livro de papel na poesia feita hoje?
R – O mesmo que o de sempre. Explanar o verso. Devastar a amazônia.
★★★
[…] espere baby não desespere
porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos.– Trecho de Espere, Baby, publicado em América (1975).
BRUNO BRUM
P – O livro “Tudo (e mais um pouco) – Poesia reunida (1971-2016)”, publicado no ano passado, começa com a série “Alô poeta”, na qual a expressão “escreve bem” aparece diversas vezes. Antes de tudo, escrever bem. Você historicamente pertence a uma geração, a poesia marginal ou geração mimeógrafo, identificada, muitas vezes de forma generalizante e superficial, pela quebra de padrões estéticos e de comportamento (edições independentes, saraus, ocupação do espaço público, drogas, sexo, cultura pop), por um lado, e o desleixo com o texto, por outro. Como é essa questão pra você? “Atitude” e texto têm o mesmo peso na sua poesia? É possível medir isso? E, nos dias de hoje, em que a internet ampliou a voz de milhões de pessoas, possibilitando o surgimento de muitos novos poetas, você acha que esse salto quantitativo é acompanhado pela qualidade do texto? É importante que seja?
R – Bruno, escrever bem tem algumas acepções. A que eu me refiro é escrever bem como escrever muito. Estar sempre escrevendo. Isso deixa a mão boba. Irada. Isso é fundamento. Quanto a escrever bem segundo algum tipo de valor, já não me engano. Cada um tem suas chinfras que variam como o azul do mar. Escrever poesia é uma atitude. Doa a quem doer. O surto digital de certa forma parece a febre marginal. Meio barato, dá vazão a muito trololó. Alguma coisa sempre fica e vai. A vantagem é que o pc tem mil e uma utilidades como ouvir poesia, buscar saber, procurar dois poemas que você goste, dar um ctrl C + V, editar e chamar de seu. E é.
★★★
ANDRÉ OVIEDO
P – Num momento tão duro e incerto que vivemos no Brasil, a poesia dá conta de fazer a gente acreditar que ainda “vai ter uma festa que/ eu vou dançar/ até o sapato pedir pra parar…”?
R – André, se a gente não dançar, a gente dança. Quem fica parado, perdeu.
★★★
cães ladram ao longe
galos abrem o berreiro
cigarras se despedem da vida
sapos coacham a verdadee assim vai mais um dia
nesse curral de Deus.– Curral de Deus, publicado em Comício de tudo: poesia e prosa (1986)
MARCELO LABES
P – A repressão dos 60 e 70 permitiu que poetas jovens e antigos inovassem suas temáticas e muito da estética da poesia de então. Nos 90 se percebe uma ressaca na criação artística em geral. Nesses tempos, percebe-se uma criação latente que vem das periferias e dos centros e que novamente se levante diante da realidade. Chacal, a poesia funciona melhor em tempos difíceis?
R – A poesia funciona sempre que a gente precisa dela. Igual ao corpo. Foi assim nos 70. Entre o poema concreto, o poema engajado, o poema encalhado, o corpo mostrou que era só abrir a boca e falar. Se você está confuso, no mato sem cachorro, senta, respira fundo, toma uma aguinha e fica. Seu corpo vai dar um jeito. A poesia idem idem.
CARLA DIACOV
P – Vi você falando (e fazendo!) em levar a poesia à cênica, à música, ao palco. Você lê (daqui pergunto também sobre a influência do gênero na tua poesia) dramaturgia? quem(s)?
R – Assim com a poesia, gosto mais do drama ao vivo e mal passado. Não leio muito pouco.
★★★
[…] eu vi Deus e o diabo
dançando na terra do sol
Glauber Rocha era o máximo
tão bom quanto rock-and-rollminha estrada é um filme
cheio de amor e ódio
pra onde quer que me vire
cinemascope caleidoscópio.– Caleidoscópio Cinemascope, publicado em Comício de tudo: poesia e prosa (1986)
MARCELO MONTENEGRO
P – Chacal, como tem sido a experiência de voltar à universidade?
R – Tô gostando. Novas amizades. Grandes aulas. Aprendi a escrever Nietzsche. E mostrou como estou gagá. Esses dias quase fui jubilado por obsolescência. Quando falei em função poética da linguagem, chamaram o rabecão. Tenho lido, meu amigo. Tenho lido coisas doidas e lindas. Que serão úteis jajá.
★★★
GERUZA ZELNYS
P – A contestadora geração mimeógrafo praticou uma poesia de resistência ou a poesia como resistência no contexto claramente repressor da década de 1970: da produção à distribuição, da proximidade com a oralidade à intenção comunicativa, do distanciamento do cânone ao desinteresse pela institucionalização, a poesia marginal engloba esse fazer literário de total ruptura. Pensando nisso, como você vê/sente/ouve essa resistência na poesia contemporânea? Na sua opinião, a resistência como ato político/poético está mais ligada a um dizer, ou a um modo de dizer? Eu também queria saber se você acha que a poesia marginal é passível de se tornar cânone e se isso seria uma espécie de sequestro acadêmico.
R – Querida Geruza, todo dizer tem um modo. Até os esgares de beckett, dizem o maldito, o não dito. Nesse tempo pós-utópico, fica difícil se rebelar. O sistema rapidamente te abduz. Aí você tem algumas saídas. Ou você vai no contrapé do sistema e puxa ou abstrai e se concentra no verso e no corpo.
Paranauê…… a academia é uma mulher muito bem vestida, maquiada, penteada que saiu na rua sem levar o guarda-chuva. Choveu muito aquele dia.
★★★
ela é uma mina versátil
o seu mal é ser muito volúvel
apesar do seu jeito volátil
nosso caso anda meio insolúvelse ela veste seu manto diáfano
sai de noite e só volta de dia
eu escuto os cantores de ébano
e espero ela chegar da orgiaela pensa que eu sou fogo-fátuo
que me esquenta em banho-maria
se estouro sou pior que o átomo
ainda afogo essa nega na pia.– Fogo-Fátuo, publicado em Nariz aniz (1979)
DANIEL MINCHONI
P – Que poesia é essa que não se limita só aos centros, tampouco à língua?
R – Boa, mister min. É justamente essa que a gente enlaça. A língua ímpia mordeu a cobra. A língua lânguida morreu à míngua. Saudades da sua impoluta pessoa.
★★★
LIVRE OPINIÃO
P – Chacal, como o próprio nome do site (Livre Opinião – Ideias em Debate) pode sugerir, deixamos este final da entrevista como um espaço livre para o artista desabafar, criticar ou colocar em debate uma ideia. Você tem algo a dizer?
R – Tô bem. Não tenho muito o que desabafar. Depois do poema escrito e do poema falado, tenho exercitado o poema, calado. Paz e amor.
★★★★★★
Livre Opinião – Ideias em Debate
jornal.livreopiniao@gmail.com
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Mandou bem Ricardão, sem teleco teco, rapé ou enrolação…