
Arte de Leon Bakst
abrindo álbuns vi
uma foto minha
com o rosto depois do choro, me conheço, o úmido estava discreto mas eu
me conheço e li
meu olho descendo pro âmago, imagine uma galáxia. é como se por dentro eu não tivesse limite, imagine um pântano. é como se eu me afogasse em mim.
naquele dia, me lembro, tinha sido a minha colação de grau.
a foto
foi tirada num restaurante
todas as famílias depois da cerimônia foram pra lá
a minha
não foi nem na cerimônia
e uma amiga chamada
camila
me convidou pra jantar na mesa dela.
– está bem. – eu disse aceitando
eu tinha 14 anos, precisava
desesperadamente de
afeto,
bastava um passarinho voar
rente ao meu topo
para que eu não quisesse que ele morresse nunca mais.
prevendo o grito, decidi avisar minha mãe só depois de chegar no restaurante,
ela ia me mandar voltar pra casa
e a palavra casa
soava como um tiro pra mim.
uma vez, faz muito tempo,
eu dormi
na casa de uma amiga, a marília. tínhamos uma festa pra ir, então eu perguntei pra minha mãe
-posso? dormir lá. a festa vai acabar tarde
a marília mora perto
do lugar.
e nesse dia, milagrosamente,
minha mãe deixou.
experimentei então uma felicidade indescritível, passar a noite fora de casa era ser livre
por algumas horas e mais do que isso, era ser
eu mesma por algumas horas
sem a interferência materna na minha personalidade, minha mãe sempre quis que eu fosse
uma continuação dos passos que ela deu.
a festa
acabou 6 horas
da manhã. voltamos pra casa da marília
eu dormi no colchão, ela
na cama. quando deu nove horas
minha mãe me ligou
berrando
dizendo vê se pode
ficar dormindo até tarde
pior ainda na casa dos outros, isso era coisa de vagabunda. volta agora, ela mandou. eu preciso de você pra me ajudar.
desliguei o telefone
com aquela sensação de horror no peito.
arrumei minhas coisas com pressa
agradeci a marília
que estava dormindo.
-tá tudo bem? – ela me perguntou sonolenta.
(segurei o
choro) – tá sim. obrigada por tudo.
–você não quer tomar nem um café? eu preparo pra você rapidinho.
-não, muito obrigada. eu preciso ir agora, sério. a gente se fala mais tarde.
no elevador me olhei no espelho,
a feia.
na rua eu corri até o ponto
prevendo a surra
imaginando os
detalhes
e era assim
que a minha mãe me controlava, era assim que ela me mantinha por perto.
o pior
é que o ônibus demorou, era domingo, e quando finalmente eu cheguei em casa
na chave virando um peso
o apartamento estava de pernas pro ar.
minha mãe disse:
-agora limpa.
e eu limpei
enquanto ela fiscalizava cada cômodo
cada canto que eu tinha passado o pano.
-aqui tem pó. – ela dizia eufórica.
e eu limpava de novo
por horas.
nesse dia da colação,
eu liguei pra minha mãe do banheiro, a camila foi comigo.
avisei que eu estava no restaurante
e que eu ia demorar
então ela começou
a cena de sempre
mas
nesse dia, de repente, eu enxerguei o que era aquilo
que a minha mãe fazia comigo, não era minha culpa, não era eu quem estava errada,
aquilo que minha mãe fazia era ela sentindo medo
da solidão. então eu disse pra ela, e não sei de onde me veio essa força, então eu disse que só voltaria pra casa quando terminasse de me divertir
eu estava comemorando a minha formatura
e puta que o pariu caralho porra, eu tinha esse direito.
desliguei o telefone
meu corpo
trêmulo.
então eu chorei
sentada no vaso, minha amiga jovens que éramos não sabia ao certo o que me dizer. limpou meu rímel borrado
tirou da bolsa
o dela e retocou a minha maquiagem.
-vou apanhar quando chegar em casa. – eu disse.
–você já ia apanhar de qualquer jeito, pelo menos hoje você fez alguma coisa por você.
e me abraçou, minha amiga era a minha mãe.
ela sempre me dizia
que a vantagem de eu ser morena
era que, depois de secar tudo, não dava nem pra perceber que eu tinha chorado.
já ela, muito clara,
quando chorava ficava inchada, todo mundo vinha perguntar o que tinha acontecido. o problema
é quando o acontecido não cabe
em palavras, ainda não nasceu um jeito de explicar o que me aconteceu.
minha mãe é horrível eu não podia dizer
porque minha mãe não era horrível
minha mãe
era a minha mãe. então prefiro
deixar essa dor sem nome
ainda bem que sou
morena
e de fato quando me sentei na mesa com os pais da camila
e com a irmã e o irmão dela
ninguém percebeu nada, foi nessa hora que o fotógrafo se aproximou.
-junta a família. –ele disse
eu dei um leve
sorriso.
★★★★★★
Leia os textos anteriores da escritora Aline Bei
★★★
Quer ficar por dentro de tudo o que acontece no Livre Opinião – Ideias em Debate? É só seguir os perfis oficiais no Twitter, Instagram, Facebook e Youtube. A cultura debatida com livre opinião